Alexandre Borges
Os idiotas da objetividade vão
sempre tentar confinar a discussão das questões raciais a leis, políticas
públicas, estatísticas e dados, mas para entender a essência humana do problema
é preciso, claro, recorrer a Shakespeare. “Otelo” e “O Mercador de Veneza” são,
acredite, as duas mais sofisticadas e complexas reflexões sobre racismo e
preconceito já produzidas pela mente humana. Se “O Mercador de Veneza” (1598)
reduz o antissemitismo a pó com o clássico monólogo de Shylock, é em “Otelo”
(1603) que o racismo encontra sua mais instigante e criativa abordagem.
Apenas para refrescar a
memória: Otelo é um mouro, um negro muçulmano do norte da África que defendia o
reino de Veneza como general. Otelo era um militar reverenciado pela bravura,
lealdade e honra pela corte, o que evidentemente irritava Iago, seu subordinado
e, para mim, o maior vilão criado por Shakespeare. Enquanto outros vilões de
suas peças eram motivados por poder ou amor, Iago cometeu seus crimes por
inveja, o único dos pecados capitais que não traz qualquer prazer, mesmo que
fugaz, ao pecador.
A raiva de Iago em relação ao
general é exacerbada quando ele se sentiu preterido na promoção ao posto de
tenente. Com uma capacidade única de manipulação, Iago cria um plano para
destruir Otelo revelando ao senador Brabâncio que sua filha Desdêmona havia
fugido para se casar com o mouro às escondidas, uma história escandalosa que
envolvia o negro africano e a rica herdeira da elite de Veneza. Brabâncio
resolve matar Otelo mas eles acabam se encontrando numa reunião com o Duque de
Veneza. No encontro, o Duque é convencido de que não houve nada além de uma
verdadeira história de amor e Otelo é inocentado.
O plano de Iago passa então a
ser ainda mais ardiloso e perverso: ele parte para convencer Otelo de que sua
esposa teria um caso extraconjugal com o jovem e carismático Cássio. Com uma
série de ações que vão levando aos poucos o marido a acreditar na infidelidade
da esposa, Iago consegue que o general finalmente perca o controle e mate
Desdêmona por ciúme. Com o plano revelado pela mulher de Iago, Otelo entende o
que fez e se mata ao lado do corpo da esposa.
“Otelo” é uma obra única sobre
racismo porque mostra as consequências trágicas do preconceito essencial de
Iago, um racista que não aceitava a respeitabilidade social e hierárquica do
general africano. O invejoso Iago conseguiu transformar o respeitável general
mouro num assassino brutal, bárbaro e covarde, fazendo com que ele se tornasse
na vida real a ideia que o racista têm do negro. O entendimento mais atento da
história de Iago pode fornecer lições preciosas para todos que buscam combater
o preconceito.
A estratégia adotada por Iago
fez com que Otelo perdesse sua identidade de homem honrado e marido dedicado e
virasse um ser bestial que cometeu um crime hediondo contra uma vítima
indefesa. O Otelo que mata Desdêmona pouco ou nada se parece com o militar que
merecia todas as honrarias da corte de Veneza. Iago é o racista essencial e,
com suas ações, insuperável, já que não apenas odeia Otelo mas age ativamente
para transformar o objeto do seu preconceito na sua imagem mental dele.
A preocupação que pode ter
motivado Shakespeare a criar um personagem como Iago aparece também no
pensamento de Thomas Sowell, um crítico severo do que chama de “subcultura
negra” citada em obras essenciais como “Intellectuals and Race” e “Black Rednecks and White Liberals“. Para Sowell, a promoção, patrocinada por
brancos da elite progressista americana, de movimentos como o “gangsta
rap” que louvam o crime, o sexo irresponsável, a violência e estilos de vida
destrutivos, explica em grande parte a dificuldade de integração cultural,
social e profissional das últimas gerações de negros do país.
Seriam os ricos da elite
ocidental de esquerda os novos Iagos? Estariam os herdeiros brancos culpados
incentivando a transformação de parte da comunidade negra na imagem e
semelhança de seus próprios preconceitos sobre ela? Estariam alguns rappers e
funkeiros, assim como seus fãs, caindo na manipulação dos preconceituosos desta
elite que financiam uma “subcultura”, como definiu Sowell, que acaba por
eternizar o negro na pobreza? Não existe resposta fácil para esta ou qualquer
outra questão séria sobre raça, mas uma boa dose de Shakespeare e Sowell podem
ser um bom começo.
O financiamento e incentivo de
manifestações sociais que renegam a alta cultura, que distorcem ou invertem a
própria ideia de arte e da busca pelo belo, justo e verdadeiro, promovendo
idéias que apenas focam em “autoestima”, “afirmação” e “orgulho” do que se é e
não no que qualquer um pode se tornar numa sociedade livre, pode ser a suprema
forma de preconceito e racismo. Iago aplaudiria de pé.
Título, Imagem e Texto: Alexandre Borges, Gazeta do Povo, 21-11-2017
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