Rui Ramos
Ninguém perceberá o atual governo se não
perceber o enorme conjunto de fracassos que está por detrás dele. Este é mesmo
um caso de “mortos agarrados aos vivos", para usar a expressão de Marx.
O padrão já é muito claro,
depois do incêndio de Pedrógão, do roubo em Tancos, do surto de legionella, ou
do jantar no Panteão Nacional: neste governo, a começar pelo primeiro-ministro,
ninguém sabe de nada, ninguém tem responsabilidade, e a culpa é sempre do
governo anterior.
Dir-se-ia que desembarcaram
ontem de Marte. Mas a sua história governativa não começou ontem, nem sequer há
dois anos. O governo de António Costa é apenas mais uma reencarnação ministerial
da geração socialista que em 1995 chegou a São Bento com António Guterres, e
que desde então tem sido assídua nos ministérios e nas direções gerais. António
Costa foi membro do governo entre 1995 e 2002, outra vez entre 2005 e 2007,
presidente da câmara municipal de Lisboa depois, e primeiro-ministro desde
2015. Alguns dos seus colegas têm dos mais longos CV governativos do regime.
Augusto Santos Silva ocupou quatro ministérios, durante dez anos, desde 2000.
Vieira da Silva, entre adjunto de ministro, diretor geral, secretário de Estado
e ministro, tem 15 anos de governo desde 1995. Como é possível que, sempre que
alguma coisa acontece, se façam de recém-chegados?
Os atuais governantes formam
um grupo unido por velhas amizades e até por parentescos (maridos e mulheres,
pais e filhos). Chegaram aos lugares da frente depois da queda do Muro de
Berlim. São a geração da chamada Terceira Via. Nunca sofreram dos escrúpulos
ideológicos de “homens de esquerda”, como Manuel Alegre. São clubistas, mas não
doutrinários. Para eles, a política só faz sentido no governo. A fim de lá
chegar, estão prontos para tudo, como se viu em 2015, quando, após perderem as
eleições, aproveitaram a disponibilidade dos inimigos históricos da atual
democracia europeia para formarem uma maioria parlamentar. A acreditar nalguma
coisa, acreditam nos maquinismos do poder. A sua maneira de governar consiste,
por isso, em ocupar o Estado, manipular a comunicação social, controlar bancos
e empresas. José Sócrates é, a esse respeito, muito mais representativo desta
geração do que agora lhes convém admitir.
Mas esta é, acima de tudo, uma
geração derrotada, uma espécie de mortos-vivos da política. Em 1995, vinham com
uma ideia: combinar a internacionalização da economia com investimento público
em educação e infraestruturas. Tratava-se de transformar Portugal numa
Finlândia. Tudo isso acabou no mais longo período de divergência económica em
relação à Europa e num resgate europeu. Deixaram, desde então, de ter ideias.
Agora, acolhem a Web Summit e montam paraísos fiscais para estrangeiros, mas
desconfiados de que não conseguirão mais do que aumentar os preços das casas em
Lisboa.
É verdade que estão no
governo. Mas apenas porque o PCP e a extrema-esquerda, eles próprios em crise,
se penduraram neles como último recurso. Têm disfarçado, assim, uma longa série
de choques: em 2014, viram o líder da sua única maioria absoluta preso por
suspeita de corrupção; em 2015, perderam umas eleições que ninguém acreditava
que perdessem; em 2016, não arranjaram verdadeiramente um candidato
presidencial; em 2017, assistiram à agonia da sua referência internacional, o
socialismo francês. Sim, estão no governo, mas como se fosse o último refúgio
contra um tempo que sentem escapar-lhes. A dependência em relação a comunistas
e neocomunistas tira-lhes qualquer iniciativa reformista. Neste momento, usam
os benefícios da conjuntura para formarem uma guarda pretoriana eleitoral,
recrutada nos dependentes do Estado. Ao fim de vinte e dois anos, é o seu
último projeto. De resto, vivem no pavor dos acontecimentos e das
responsabilidades.
É isto o que passa por governo
em Portugal: um clã desesperado, representante de ideias em que já não acredita
e de um passado que falhou, a tentar fazer do Estado o bunker derradeiro das
suas ambições. Marx falou um dia dos “mortos agarrados aos vivos”. Podia estar
a falar da política de António Costa e dos seus colegas.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
14-11-2017
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