José Manuel Fernandes
Talvez seja a pacatez dos costumes, talvez
a ligeireza da oposição, mas certo é que pouco se fala de como esta governação
já deixou feridas que levarão muito tempo a sarar, se é que não são incuráveis
1. Primeiro que
tudo uma pequena história, um caso daqueles a que quase não se liga, mas que
tem tudo para ser exemplar.
Passa-se em Poiares, Peso da
Régua. Sabe onde fica? Eu também não sabia. Tive de ir ver ao mapa. E confirmar
que nessa pequena aldeia situada entre vinhas durienses e vales cavados o único
edifício que se destaca é mesmo o da escola. O de uma escola que vai fechar.
Falo dos Salesianos de
Poiares, um colégio onde mais de metade dos alunos recebe apoio social escolar,
mas que, localizado no interior, numa região onde não existe classe média capaz
de suportar as mensalidades do ensino privado, vivia sobretudo dos contratos de
associação com o Estado. Começou a perder alunos quando deixou de poder receber
os que vinham dos concelhos vizinhos de Sabrosa e Santa Marta de Penaguião,
deverá agora ficar sem turmas suficientes para se manter aberta por o Ministério
ter deixado de as financiar. Consultando os diferentes rankings (o clássico e o
do “sucesso”) verificamos que muito provavelmente os seus mais de 200 alunos
terão de ir para escolas que prestam um pior serviço público educativo e onde é
natural que cada nova turma a constituir custe ao Estado mais dinheiro do que
aquele que pagava pelas turmas desaparecidas nos Salesianos de Poiares.
O encerramento deste colégio
lembra-me o fecho de outras escolas noutras eras. Traz-me à memória a primeira
expulsão dos jesuítas, decretada pelo Marquês de Pombal em 1759, um terramoto
cultural de consequências bem mais dramáticas do que o terramoto de Lisboa,
pois deixou 90 por cento dos alunos sem escolas nem professores – o dano foi
tão grande que só em 1930 Portugal voltou a ter o mesmo grau de escolarização.
Ainda hoje se fala dessa trágica medida como uma meritória ação modernizadora
do Marquês, tal como se recorda a I República como aquele tempo em que os
governos apostaram da educação. Pois apostaram: logo nos primeiros dias depois
do 5 de Outubro expulsaram de novo os jesuítas e fecharam os seus dois
principais colégios, o de Campolide (onde hoje funciona a Universidade Nova) e
o de São Fiel, perto do Fundão, onde estudara Egas Moniz, um edifício que ficou ao
abandono e foi finalmente consumido pelas chamas nos incêndios do Verão
passado. De uma penada fez-se desaparecer quase todo o ensino de nível
secundário em Portugal.
Não creio, nem sugiro, que a
obra dos Salesianos em Poiares seja semelhante à dos jesuítas na área da
educação, nem que o dano do encerramento daquele colégio seja equivalente. O
que em tudo aproxima estes casos é a soberba de quem governa e a arrogância
ideológica de quem manda. O dogma enquistado de que “escola pública” é sinónimo
de “escola do Estado”. A contradição insanável entre a retórica e a prática:
fala-se em melhor educação, mas destrói-se a boa educação; fala-se em repovoar
o interior, mas esvazia-se mais uma aldeia, uma aldeia que nos últimos anos até
já perdera a escola primária (do Estado), o centro de saúde, a farmácia e mesmo a casa do povo.
Não vou regressar ao debate dos contratos de associação, não vou sequer repetir os argumentos a favor de que, ao menos, se tivesse em consideração a
qualidade das escolas e se optasse pelas melhoras, fossem elas do Estado ou estivessem
ao serviço do Estado. Apenas noto o dano irreversível: a obstinação ideológica
de uma secretária de Estado e o coro dos bloquistas está a destruir escolas que
no futuro ninguém reconstruirá. Não porque falte a essas escolas mérito ou
seriedade, mas porque, entre outras coisas, lá os professores não fazem as
greves do costume.
2. Mas fossem
apenas estes os estragos de uma governação centrada no curto prazo, em
conservar o apoio de partidos que se tornaram adversários do progresso e na satisfação de clientelas, com as da administração
pública à cabeça. Mas não são, pois há mais e mais grave.
Todos se recordam, por exemplo,
de como nos garantiram que o regresso às 35 horas na Função Pública não teria
custos para os contribuintes. E todos também terão os ouvidos bem cheios das
inúmeras vezes que primeiro-ministro, ministro das Finanças e ministro da Saúde
nos atiraram números para as contratações que estavam a ser feitas para o
Serviço Nacional de Saúde. A percepção pública de que, nos hospitais e centros
de saúde, as coisas estavam piores, ou a degradação de alguns indicadores como
os relativos aos tempos de espera, tudo isso seria apenas consequência da
“pesada herança”, nada teria a ver com o “esforço de investimento” da atual
maioria.
Esta semana ficámos a perceber
melhor porque é que aquela bota não batia com esta perdigota. Mais
precisamente, tivemos a confirmação daquilo que intuíamos: boa parte das
contratações feitas para o SNS não tiveram reflexo na qualidade do serviço,
pois mais funcionários a trabalharem menos horas acabou por se traduzir em…
nada ou menos que nada. Em concreto, e cito o relatório do Observatório dos Sistemas de Saúde, é que
sendo verdade que nestes dois anos e picos se contrataram mais 3000
enfermeiros, isso só se traduziu em mais 0,1% de horas trabalhadas. Já nos
técnicos de diagnóstico há mesmo mais 3,2% de profissionais no SNS, mas menos
4% de horas trabalhadas.
Ter tratado os funcionários
públicos de forma diferenciada dos restantes trabalhadores (para quem se
manteve o limite semanal das 40 horas) não foi apenas injusto – está a ser
também ou uma sobrecarga (por via dos gastos adicionais com mais funcionários
para realizarem o mesmo serviço), ou uma penalização (porque a qualidade dos
serviços se degradou). Não admira por isso que os hospitais públicos
estejam “à beira de um ataque de nervos”.
Perguntar-se-á: era necessário
ter realizado apressadamente esta reversão? Não. Vai ser fácil voltar a
reequilibrar sector público/sector privado? Também não. O que significa que
ficámos com uma fatura que teremos de pagar todos os anos pois, como se previa,
não houve o prometido milagre da multiplicação das horas com menos horas de
serviço.
3. Podia continuar a dar
exemplos de danos que ficam, de retrocessos com um custo futuro na fatura
orçamental ou na competitividade do país, mas quis o calendário que fosse
conhecido esta semana um outro relatório comprometedor: o do Tribunal de Contas sobre o processo de
privatização e recompra da TAP, onde as críticas mais duras vão para a reversão
parcial da privatização. De acordo com o TdC, a recompra de capital da
companhia aérea levou o Estado a assumir “maiores responsabilidades na
capitalização e financiamento da empresa”. Mais: o Estado, mesmo passando a
ficar com 50% da TAP, acabou a perder direitos económicos, que passaram de 34%
para 5%, sendo ao mesmo tempo maior a sua exposição aos riscos adversos da
empresa.
Com a gestão executiva na mão de privados
e o Estado sentado na cadeira de quem apenas assiste, que ganhámos com esta
recompra? O Tribunal responde: mais riscos. E quem responde, em última análise,
por esses riscos? Os de sempre: os contribuintes.
4. Há sempre um preço a pagar quando se depende do apoio da esquerda radical. E já se sabia que, mais tarde ou mais cedo, esse preço também chegaria às leis laborais. Mas aqui o espantoso foi termos estado todos a debater o que essa esquerda radical queria e o que Governo e os parceiros sociais (menos a CGTP) não lhe deram, em vez de entendermos duas coisas essenciais: primeiro, que esta é já a 14ª alteração da legislação laboral desde 2009, o que dá bem ideia da instabilidade legislativa que nos norteia; segundo, e porventura mais importante, que estas alterações legislativas vão no sentido oposto da flexibilização e abertura do mercado de trabalho, contrariando todas as recomendações da Comissão Europeia, da OCDE e do FMI.
Não é um detalhe. Nos últimos
anos por toda a Europa se reformou no sentido da flexibilização – fê-lo Renzi
em Itália, fê-lo agora Macron em França –, mas em vez de avaliar o que devíamos
fazer para aproximar o nosso quadro legislativo ao dos nossos parceiros,
ficámos presos num debate arcaico: o da precariedade. E arcaico porque, num
mundo que muda cada vez mais depressa, tudo o que parece certo hoje pode não
ser amanhã, o que torna, no limite, todos os empregos e todas em empresas em
“precários”.
Uma boa demonstração de como a
abordagem à legislação laboral foi feita com uma lente errada são as palavras do próprio ministro responsável, Vieira da
Silva, para quem a existência de um mercado laboral dual – com contratos muito
protegidos e outros sem proteção nenhuma – se faz agindo unicamente num dos
lados do problema, isto é, tratando de “limitar na lei as possibilidades de
recurso à contratação não permanente”. Estamos a enorme distância do
diagnóstico e sugestões de um tal académico chamado Mário Centeno, agora seu
companheiro de Governo e muito esquecido do que sempre defendeu. Ou seja,
estamos muito longe de equilibrar os dois pratos da balança, dando mais proteção
aos contratos a prazo e menos aos permanentes.
Ao não o fazer, antes
desequilibrando ainda mais a balança, o que vamos ter são piores condições para
criar empregos e empresas, tão simples como isso.
5. Mas então e
Mário Nogueira? Não está ele em guerra com o Governo? Não há por aí uma greve
de professores? Não estará a esquerda radical de regresso à rua?
Sim, assim parece ser, só que,
de novo, houve danos que já se materializaram – e não estou a falar dos danos
políticos que a ruptura entre o PS e os professores possa ter para as suas
ambições de maioria absoluta. O dano já feito foi o de colocar a discussão no
terreno do tempo de serviço a recuperar em vez de ter tornado claro, desde o
início, que isso nunca poderia ser feito no quadro de uma carreira docente onde
as promoções são quase automáticas e generosas.
Um governo reformista teria
dito aos sindicatos: ora vamos lá ver o que podemos fazer com o dinheiro que
temos, mas vamos também mudar de alto a baixo a estrutura e a lógica da
carreira docente. Já um governo reversionista como o que temos
a única coisa que podia dizer aos sindicatos é que ia negociar prazos e
escalonamentos. Agora está a pagar o preço de ter criado expectativas que não
pode cumprir – ou melhor, que o país não pode suportar, pois é muito dinheiro e
para sempre.
Mas aqui chegados, do mal o
menos: a CONFAP (que representa as associações de pais) parece por fim ter
entendido que é chegada a altura de “todas as famílias poderem fazer a sua escolha pela escola”.
Até para evitarem as greves e ficarem reféns das agendas sindicais.
Isto se tiverem escola para
escolher, o que vai acontecer cada vez menos. Naquele pedaço do nosso interior
duriense, concelho de Peso da Régua, vão já deixar de ter. Lá como numa dúzia
de outros locais, a maioria deles também no interior.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
21-6-2018
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