Rui Ramos
A presidência de Trump teve o efeito de
trazer para a luz do dia o sectarismo e a vulgaridade de uma elite despeitada
por os cidadãos americanos terem votado contra as suas instruções.
A primeira regra do jornalismo
atual é esta: seja o que for que o presidente americano Donald Trump diga ou
faça, o contrário é que está certo – seja o que, em cada momento, for o
contrário.
Há uns meses, Trump ameaçava o
ditador da Coreia do Norte com um botão nuclear maior do que o dele. Que louco, que
criminoso! Não sabia ele que o mais importante, numa situação de confronto, é
continuar a conversar e a negociar, mesmo que os acordos em cima da mesa não
sejam muito bons? Que é um perigo encurralar Kim Jong-un? Que desconsiderá-lo
só por ser um ditador é até ilegítimo, porque não compete a nenhum país
escolher os líderes e os regimes dos países com quem tem de se entender?
Mas isto, como já disse, era
há uns meses. Porque na terça feira, Trump viajou até Singapura para conversar, negociar e
tirar a foto da praxe com o ditador norte-coreano. Ah, o que foste fazer,
grande louco e criminoso! Não sabe Trump que é um perigo dar a Kim Jong-un
qualquer destaque? Que nunca devia ter aceitado conversar e negociar, a não ser
sobre um compromisso firme e claro? E que vergonha se encontrar com um ditador,
quando devia estar a fazer tudo para mudar o regime!
A partir daqui, posso
antecipar os comentários da imprensa à eventual notícia de que, afinal, o
entendimento desta semana não deu frutos: como é que foi possível deixar
escapar esta grande oportunidade para resolver a tensão na Península da Coreia?
Não percebeu Trump a ocasião histórica criada pela disponibilidade de Kim
Jong-un para se encontrar com ele? Que louco, que criminoso!
Tínhamos as notícias falsas.
Agora temos isto: os comentários falsos, isto é, comentários que não têm nenhum
fundamento, a não ser a má vontade. A imprensa americana e internacional
não se dá conta de que, na sua sanha de recusar a Trump qualquer razão ou
legitimidade, está a reduzir a análise a uma birra incoerente — se Trump não
conversa com Kim Jong-un, devia conversar; se conversa, não devia
conversar. Há quem, dramaticamente, ache que o jornalismo corre o risco de
morrer com Trump. Steven Spielberg até fez um filme por causa disso (The
Post). Mas se esse receio tem alguma razão de ser, é porque demasiados
jornalistas abandonaram qualquer pretensão de objetividade a favor de uma
lógica de guerra civil, que os tornou uma espécie de espelhos do que eles
próprios dizem ser Trump. Nada há de mais parecido com o trumpismo do que o
anti-trumpismo.
Os ícones das letras e das
artes que outrora era suposto representarem a opinião bem pensante escorregam
alegremente pela mesma ladeira. Há dias, foi o ator Robert de Niro quem, numa
cerimónia pública, resolveu berrar duas vezes “Fuck Trump!” Mas não era Trump o único responsável por
introduzir a ordinarice na vida pública? Talvez a presidência de Trump tenha
tido o efeito de trazer para a luz do dia o sectarismo e a vulgaridade de uma
elite despeitada por os cidadãos americanos terem votado contra as suas
instruções. Afinal, quem é que se dá mal com a democracia?
Há muito que questionar na
política americana. Trump decidiu fazer de conta que os EUA não têm amigos, mas
apenas interesses, e que o que importa não é a estabilidade de alianças
históricas, mas a oportunidade de acordos vantajosos. É uma revolução inquietante,
não porque seja agora histrionicamente protagonizada por Trump, mas porque
prolonga tendências já visíveis em Barack Obama. Vão os EUA desistir
do tipo de liderança a que habituaram o mundo desde 1945? Infelizmente, a
comunicação social conseguiu criar uma cortina de fumo que impede qualquer
discussão. Desconfio que Trump agradece.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
16-6-2018
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