segunda-feira, 16 de setembro de 2019

[Pensando alto] Duas cortes supremas e o caruru dos ministros

Pedro Frederico Caldas

O diabo pode citar as escrituras quando isso lhe convém.
Shakespeare

Quero refletir um pouco sobre duas cortes supremas. A Suprema Corte dos Estados Unidos e o seu correlato Supremo Tribunal Federal do Brasil.
               
Como os Estados Unidos criaram o sistema presidencial, à proporção que as colônias europeias nas Américas iam-se tornando independentes assumiam esse sistema. Não quero me estender no curso de uma história que todos nós estudamos nos bancos escolares.
               
Quero só timbrar que, passados quase oitenta anos da independência, foi proclamada a república brasileira, assentada numa constituição basicamente moldada por Ruy Barbosa, admirador do presidencialismo e do constitucionalismo americanos.
               
Criamos uma suprema corte à imagem da existente na já então mais de centenária e bem-sucedida república dos Estados Unidos. Acredito que as comparações, trazidas para o presente, ficam por aí.
               
Como conheço bem a nossa corte suprema, sua atual composição e costumes dos seus membros, venho de há muito procurando saber como vivem os membros da Suprema Corte americana.
               
Parece uma corte de fantasmas. Perpasso páginas da imprensa, leio artigos e sinto muita dificuldade em saber o que estão fazendo os seus membros, aqui chamados de justices.
               
São levados à suprema corte americana algo em torno de cinco a oito mil processos por ano. Vários desses processos são selecionados para que os advogados patronos das causas façam sustentação oral para demonstrar a importância e a repercussão do julgamento da causa pela corte.  O fato é que somente uns oitenta processos são selecionados para julgamento, e, além disso, as petições devem ser objetivas e não exceder, em tese, as 29 laudas.
               
Ora, se comparamos esses cerca de oitenta processos julgados pela Suprema Corte com as dezenas de milhares que são julgados por nosso Supremo Tribunal Federal, haveremos de concluir que os membros da Corte Suprema americana têm tempo à vontade para sair por aí flanando. E realmente têm.
               
Mas como é difícil você conseguir saber o dia a dia desses justices. Parece que são fantasmas. Mas minha curiosidade era e é grande para saber o que fazem esses senhores juízes. Sei que não ganham muito. Recebem por ano em torno de US$244,000.00. Alguns são ricos. Vários são professores de direito. O fato é que os seus ganhos são insignificantes ante o que aufeririam se estivessem em grandes organizações advocatícias. Às vezes ganham muito na edição de livros que escrevem.
               
Assisti boa parte das intermináveis audições a que foi submetido Neil M. Gorsuch, candidato apontado pelo presidente Trump para preenchimento da vaga deixada pela morte do justice Antonin Scalia. A vida profissional e moral do candidato foi submetida a um escrutínio profundo e os senadores foram duros na sabatina. É como se fosse uma prova olímpica de competência e integridade de caráter. Como já era juiz federal, seus votos e sua vida foram inteiramente radiografados. Causa inveja aos processos de confirmação que tenho assistido para preenchimento de vagas no STF. O despreparo da maioria dos senadores brasileiros para proceder à sabatina é mais que evidente. Quem sabe um dia o Brasil chegue lá...

Vivem uma vida próxima da normalidade. Observam vida recatada, sem embargo de idas a teatros, balés, espetáculos esportivos, como qualquer pessoa do povo. Li que, como costumo fazer, um dos membros posta-se na porta da casa distribuindo guloseimas às crianças no dia da festa de Halloween. Não andam assediados e poucos eventos sociais são patrocinados pela corte. Se forem a restaurantes ou lugares públicos nem serão notados.
               
Fazem palestras não remuneradas, viajam a convite para eventos nacionais e internacionais com despesas sempre pagas pelos patrocinadores. Quando isso sai do razoável, a crítica vem. Não andam dando entrevistas nem deitam falação sobre temas que terão de desatar.
               
Tirante isso, voltam às condições de fantasmas e só tornam a ser mencionados quando das grandes decisões de que participam.
               
Já da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal não se pode dizer o mesmo.
               
Vão chegando para um trabalho que devia ser discreto, lá vêm os repórteres com os microfones arrancar entrevistas e pronunciamentos sobre casos que decidirão.
               
Vivem se queixando que decidem dezenas de milhares de casos por ano. E isso é verdade. Deveria ser um trabalho insano. Os pobres coitados, pela labuta de que se queixam, não deveriam ter tempo nem para tomar um banho decente. A despeito disso, haja viagem, haja simpósios em bons hotéis e resorts, para não falar em almoços e jantares com gente que, muita vez, terão que julgar. Não quer dizer que não haja ministros de vida reclusa e morigerada e que observam a liturgia do cargo.
               
Por outro lado, como fartamente noticiou a imprensa, um deles, figura polêmica pelo apoucado conhecimento jurídico, açoitado por algumas doses de whiskey, abriu o dicionário de palavrões para louvar o próprio e a pobre mãe de jornalista ilustre, que se retirava de um dos inúmeros convescotes da malsinada Brasília, cidade que fica ali na confluência de Sodoma e Gomorra.
               
Temos todos assistido ao vivo e em cores inúmeros pega-pra-capar entre alguns de seus membros, rififis próximos a um verdadeiro pugilato. Um escárnio.
               
Temos algo muito emblemático em relação ao STF. Refiro-me ao julgamento do processo conhecido como Mensalão. Condenaram pessoas do núcleo financeiro a mais de quatorze anos, os integrantes do núcleo publicitário até a trinta e sete anos, pessoas que nada mais fizeram do que executar um plano que veio de cima, das mais altas esferas do poder executivo. O plano era comprar uma base aliada para não só criar a hegemonia do PT como impor um programa de condução do País ao socialismo, estratégia desenhada no chamado Foro de São Paulo, que buscava levar toda a América Latina a regimes ditatoriais, começando pela tomada do poder pelo voto. As lideranças desse Foro estavam nas mãos politicamente suspeitas de Fidel Castro, Lula e Hugo Chaves, pessoas que falavam em democracia com o maior descaramento.
               
Enquanto isso, o STF condenava a penas leves toda a cúpula do PT, exceção feita a Lula, considerado inocente, o homem que de nada sabia. Uma vez livre, leve o solto, pode continuar a governar e permitir, por comissão ou omissão - quero aqui ser light -, a instalação do Petrolão, plano nascido da experiência do Mensalão, ou a ele coetâneo.
               
Em razão dessa forma desarrazoada de apreciar toda extensão de um sofisticado plano político-delinquencial, a grande maioria não pode ir a um restaurante ou a eventos e lugares públicos, com medo que o povo puxe a cordinha da descarga.
               
O PT inaugurou no Brasil uma era que se vem revelando um verdadeiro sinal dos tempos, algo que poderíamos chamar do espírito do tempo petista, um lamentável zeitgeist do PT. Esse mesmo partido, que se tem mostrado capaz de qualquer coisa, por uma dessas injunções históricas conseguiu nomear a maioria dos atuais membros dessa corte, procurando sempre, com o dedo que não se pode chamar de limpo, apontar aqueles que melhor preenchessem os requisitos de seu decálogo político. Um Senado, que veio se provar composto por muitos corruptos, disse amém a todas essas indicações.
               
Tomara que tal critério de nomeação não se venha transformar num vaticínio; tomara que os nomeados não se achem devedores de quem os nomeou e assumam posição acima das conveniências e compromissos pessoais para pensar antes de tudo no bem comum, no bem do País, no “esquecido homem brasileiro”, aquele que trabalha e paga impostos sem praticamente nenhuma contrapartida.
               
A propósito, parece ser um desplante, depois de tantas críticas, um dos ministros mais chegados ao partido procurar compor a turma que julgará os processos da Lava Jato. Foi uma temeridade, para não dizer um acinte.
               
Os membros de nossa suprema corte deveriam alçar a si próprios ao sonho de Ruy Barbosa que queria constituição e instituições à altura das americanas. Deveriam comportar-se como os ilustres justices da Suprema Corte americana, competentes, recatados, de costumes morigerados e quase invisíveis, sobre terem a vantagem de poder frequentar qualquer ambiente público, onde, se reconhecidos, serão reverenciados.
               
A toga, meus caros, usada desde Roma, lembra aos julgadores a seriedade de sua missão. Simboliza a grandeza da missão de julgar. Envergar a toga pressupõe atributos de sapiência, circunspecção, altivez e senso de grandeza. Representa o sentido de missão que deve estar presente na mente dos senhores julgadores, especialmente daqueles que estão na cúpula do sistema. É um símbolo a ser dignificado.
               
Pensando em tudo isso, fui dormir. Tive um pesadelo.
               
Vi sete ministros da nossa corte num caruru de Cosme e Damião. Todos envergando as respectivas togas, sentados no chão. No colo, pratos com vatapá, xinxin de galinha, farofa de dendê e caruru gosmento.


               
O sonho tornava-se denso e sufocante. Via os ministros comendo de mão, empurrando mais comida em bocas já cheias. Via, nauseado, o vatapá, a farofa de dendê, o caldo do xinxin de galinha e o caruru gosmento escorrendo pelas comissuras labiais e pelos cantos das bocas. Um por um, os vi usando as togas para limpar toda aquela baboseira e as mãos sujas. Para minha angústia, tudo debalde. As togas, além de não darem conta do recado, já estavam todas emporcalhadas.
               
Uma boa semana para todos.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, 26.5-2017

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