Nicolas Chamfort
Por volta do século XVI a
China detinha mais de 50% do PIB mundial. Fechou-se ao mundo e murchou. Chegou
ao ponto de ser retalhada em zonas de interesses de potências europeias. O ópio
grassou e o chinês era conhecido como “o homem doente da Ásia”. Em
contrapartida, o mundo ocidental floresceu como nunca e a Europa se transformou
no centro difusor da tecnologia e das liberdades individuais. O comunismo,
mesmo para países, como a China, que nunca souberam o que era uma verdadeira
democracia, se mostrou incompatível com a natureza humana e só prevaleceu por
setenta anos a pulso e pelo emprego do totalitarismo, a forma mais cruel,
profunda e abrangente de ditadura. Estou falando em comunismo aqui apenas como
um registro histórico e para sublinhar o seu domínio sobre a China por cerca de
quarenta anos.
O presidente americano Richard
Nixon fez uma histórica visita à China (1972), no fim da era Mao, e se
comprometeu a inserir a China no comércio internacional de que estava
praticamente banida. A China, mudada a guarda, colocou numa gaveta de perdidos
e achados a fórmula comunista e começou uma forte abertura para o livre mercado
e para a livre iniciativa, mais que acelerada após a derrocada do bloco
soviético. Para que vocês tenham uma noção mais precisa de como o capitalismo evoluiu
na China, vamos relembrar uma historinha.
Quando das olimpíadas na
China, a revista Veja fez uma edição especial sobre o país. Registrava que, já
naquele ano, a China era menos estatizada do que o Brasil antes das
privatizações do governo Fernando Henrique. Das muitas abordagens da revista há
uma marcante. Um alto prócere do partido comunista chinês relatou ao repórter
algumas discussões com membros do PT. Aqui abro parênteses para relembrar que o
PT mantinha relações especiais com os partidos dos países comunistas, mesmo
aqueles só nominalmente comunistas, como era o caso chinês, ao passo que
procurava distância dos partidos democratas. Essa autoridade chinesa
confidenciou que os emissários petistas revelaram que tinham como plano
reestatizar o que fora privatizado, enquanto eles achavam um plano muito
estranho pois a intenção era continuar a privatizar, em marcha batida, o que
ainda era estatal na China. O PT, como sempre, estava descolado da realidade.
Mas esses fatos relatados não
são novidade para quem acompanha a geopolítica. Por isso vou dar aqui uma
impressão de um episódio que vivi.
Fazia um curso de inglês nos
Estados Unidos e, como fiquei cerca de dois anos no curso, tinha como colegas,
que se renovam aos borbotões, gente de toda parte do mundo, principalmente
gente da ex-união soviética e chineses. Como era uma sala do último grau, um
belo dia, a professora dividiu a turma em grupos para tratar de temas
econômicos. O tema de meu grupo era como resolver o problema de um grupo
industrial americano, de área de mão de obra intensiva, que estava caminhando
para o insucesso face à concorrência da indústria asiática.
Fui pelo grupo escolhido como
líder, sob o argumento de que me consideravam bem situado no âmbito da ciência
econômica. Propus a eles o seguinte plano: a) o grupo deslocaria suas plantas
industriais para um país asiático de baixa carga tributária, mão de obra bem
qualificada e salários bem abaixo dos praticados na América; b) os principais e
indispensáveis empregados, como alguns diretores, gerentes e técnicos seriam
também deslocados junto com as fábricas; c) os centros de distribuição nos
Estados Unidos seriam preservados para manter necessária capilaridade de
distribuição dos produtos que viessem das plantas asiáticas; e d) aos mais de
noventa e cinco por cento que seriam demitidos, o grupo econômico asseguraria
plano de saúde por seis meses e pagaria a cada um dois salários por cada ano de
serviço, assegurado sempre um mínimo de três. Estufei o peito ao apresentar o
projeto ao grupo: posava de empresário eficiente e bonzinho.
Meu projeto, por mais óbvio
que fosse, recebeu efusiva aprovação do grupo.
Mas aí, justamente aí, houve
forte oposição de um dos membros. Era o chinês do grupo. Rapaz bem-apessoado,
formado por uma das melhores universidades chinesas. Em suma, técnico refinado,
boa formação cultural e já detentor de um manejo muito bom da língua inglesa,
tanto que foi escolhido como o redator do grupo. Estava aprimorando o idioma
para fazer pós-graduação numa das melhores universidades americanas.
Ele aprovava todo o plano,
achava uma boa sacada, mas desaprovava veementemente as indenizações que o
plano preconizava. Fez os cálculos em sua inseparável maquininha o jogava na
mesa o desperdício que aquilo representava. Eram números enormes por ser um
grupo industrial de mão de obra intensiva. Por que pagar o que não era devido,
exclamava! O dinheiro que seria jogado
fora, segundo sua concepção, poderia representar a sorte da realização do
plano, que considerava bem bolado e factível, contanto que não se pagasse aos
empregados demitidos aquilo que a legislação americana não obrigava.
Por mais que que eu e os
outros membros do grupo repisássemos ser uma boa prática compensar de alguma
forma quem perderia o emprego, ele insistia que muito pior seria um hipotético
fracasso do plano justamente pelo desfalque de recursos a serem indevidamente
despendidos. Arguia que jamais se faria uma bobagem dessa na China. Aduziu que
não fazia sentido econômico se proteger quem estava perdendo o emprego se a
empresa, dentro do plano a ser executado, seria salva e geraria mais empregos
do que os que estavam sendo eliminados. Seus argumentos sob o ponto de vista
econômico eram irrespondíveis e, dentro dessa lógica fria e matemática, porém
mais eficiente, foi dobrando um por um dos participantes e, ao cabo, conseguiu
me persuadir também.
Essa abordagem cartesiana, a
disciplina e o empenho, poderão transformar a China na maior economia do mundo,
como era há cinco séculos. A China poderá ser a mais bela joia na coroa do
capitalismo, ou melhor, o triunfo final e definitivo dos princípios do livre
mercado e do respeito ao direito de propriedade.
A China, arrastando o seu
entorno asiático, poderá se transformar no porta-estandarte do capitalismo no
Século XXI. O único problema é uma certa inclinação ao keynesianismo. De um
lado, o povo produzindo como nunca; do outro, o governo injetando crédito em
excesso, incentivando um povo de tendência poupadora a se endividar e elevando
a dívida pública a níveis já preocupantes; os bancos jogando dinheiro a rodo em
obras sem paralelo que agora não encontram comprador. Há cerca de 60 milhões de
residências construídas sem haver quem possa comprar. A bolha chinesa está
murchando e tomara que vá se desinflando aos poucos, caso contrário, se
explodir, o país poderá entrar em uma crise sem paralelo. Os números
fantásticos de seu crescimento econômico nas últimas décadas já desceram a
patamares mais lógicos.
A China continuará a mandar,
como tem feito, seus melhores estudantes para cursos de economia e
administração nas boas universidades, principalmente as americanas,
inegavelmente as melhores. Não pode cair é na besteira de mandar seus quadros
para fazer graduação ou pós-graduação com professores como Belluzzo,
Mercadante, Guido Mantega ou Bresser Pereira. Voltariam querendo fazer Plano
Cruzado, Plano Verão, congelamentos e outras estranhezas econômicas. Seria o
fim da picada e o comprometimento econômico da China.
Mas, algum inadvertido ou
saudosista inconformado poderá perguntar “se a China não é comunista”. A
resposta é não, claro que não é. A sua lista de bilionários muito em breve
poderá liderar o ranking da revista Fortune. O nome e a manutenção de um
partido único podem mais se assemelhar a um fascismo mitigado, que irá
desaparecendo com o tempo. Por enquanto, a unidade de comando político
incontrastável permite-lhe tomar medidas urgentes na área econômica, muitas
vezes postergadas ao limite da irresponsabilidade pelos governos e parlamentos
de nações democráticas.
Se por lá houvesse a
necessidade que o Brasil está tendo de fazer uma reforma trabalhista e
previdenciária, as medidas necessárias já teriam sido tomadas sem nenhuma
discussão.
Mas se a China não é comunista
e pode ser o mais vistoso porta-estandarte do capitalismo, qual a mensagem a
ser dirigida às viúvas de Marx e Lenin, em suma, à esquerda, agora sem
estandarte e sem proposta? A mensagem
pode ser resumida em duas palavras:
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, 13-7-2017
Colunas anteriores:
https://vozdabahia.com.br/comunismo-cristaos-sao-vigiados-por-policiais-na-porta-de-suas-casas-na-china/
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