O Brasil finge que está escandalizado com a guerra sangrenta entre PT e PMDB por cargos no novo (velho) governo. Na verdade, o país já está acostumado com o festival de fisiologismo – tanto que consagrou nas urnas esse projeto de parasitismo do Estado. O que deveria escandalizar é aquilo que ninguém comenta: Dilma, a caixinha de surpresas, parece estar vazia. Empossada na Presidência (será que já é para valer?), a criatura de Lula não soltou nem um balão de ensaio – nem um Fome Zero para distrair a imprensa, como fez o chefe. Em sua primeira semana de governo, Dilma lançou o Ideia Zero.
Em meio a toda a espuma de feminismo reciclado, mitologia do oprimido e esquerdismo nostálgico (ai, que saudade da ditadura…), emerge o grande debate do novo governo: o valor do salário mínimo.
Nunca antes na história deste país se viu tamanha sinceridade na estreia de um governante. É sintomático que a primeira semana da primeira presidente – ou presidenta, como pede o fetiche libertário – seja marcada pela discussão sobre R$ 20 a mais ou a menos para o salário mínimo. A mensagem é clara e franca: às favas com o eufemismo revolucionário, vamos tratar do varejo.
Do discurso de posse da presidenta aos seus primeiros atos de governo, tudo é um show de coerência. Não há nenhum vestígio de projeto nacional, diretriz administrativa ou plano de ação. Apenas um equilíbrio perfeito entre a mistificação (a lenda da ex-guerrilheira) e a volúpia (o banquete partidário). Se a paisagem começa a parecer muito desértica, surge uma ministra para anunciar o PAC da miséria, dando continuidade ao milagre da multiplicação de slogans. O nascimento do governo Dilma vem provar, ao Brasil e ao mundo, como a inoperância pode ser exuberante.
E emocionante. Em seu primeiro discurso depois de empossada, no plenário da Câmara dos Deputados, Dilma Rousseff chorou. Era a parte mais difícil do script, para alguém mais afeita à distribuição de caneladas. O trecho escolhido para o pranto foi perfeito: “Sou, neste momento, presidenta de todos os brasileiros”. Faltou completar: “Principalmente os do PT e do PMDB”. Mesmo assim foi bonito, imaginando-se que “todos os brasileiros” inclui, por exemplo, a ex-escudeira Erenice Guerra, hoje exilada em sua nova mansão no Lago Sul.
O abraço emocionado de Dilma e Erenice na posse é um belo símbolo desse novo Brasil de todos, que não discrimina nem os traficantes de influência.
Os brasileiros do PT e do PMDB corresponderam imediatamente ao ideal de generosidade da presidenta. Um expoente do PMDB, ao ouvir de um ministro do PT que não ficasse chateado porque suas boquinhas no ministério perdido seriam preservadas, respondeu: “Não quero nada. Fica com tudo”. Ou seja: o Estado é deles, mas nada de apego. É um Brasil magnânimo que está nascendo.
Nesse espírito despojado, o ministério da presidenta deu o tom do que será a administração pública no novo governo. Ao tomar posse, o ministro da Previdência, Garibaldi Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, explicou que não entende nada de sua nova pasta (“não tenho realmente o currículo desejado”). Mas ressalvou que não está só, lembrando que seu colega Edison Lobão, afilhado de Sarney, assumiu o Ministério de Minas e Energia sem entender nada do assunto também. Bem lembrado. O que não pode haver é desigualdade.
Já o novo ministro da Indústria e Comércio, Fernando Pimentel, militante do PT e amigo da presidenta, deu uma aula de política cambial. Explicou que os leigos pensam que câmbio flutuante é como um Titanic, mas na verdade “é uma porção de patinhos de borracha flutuando na mesma onda”. Pela intimidade com o tema, Pimentel acaba tomando o lugar da ministra da Pesca. Não há o que temer. Deus está vendo isso tudo. Lula também. Ou vice-versa.
Guilherme Fiuza, Revista Época, 11-01-2011
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