Camarada Ferreira Fernandes,
Apesar da distância que nos
separa, tenho esperança que os serviços postais do teu planeta permitam a
entrega desta missiva nas melhores condições. Trato-te por tu, camarada, como
deve ser entre pessoas humanas de bem.

Olha, eu também me enervo; não te preocupes, isso é normal. Às vezes também tenho vontade de chamar “pedaços de merda” a alguém, até a ti, mas consigo conter-me. É certo que não sou “um dos mais reputados jornalistas portugueses” mas, talvez por isso mesmo, tenho uma reputação a manter. Costumo respirar fundo e contar até dez, quase sempre interrompido por um gesto de cortesia espontâneo de “bom dia” acompanhado por um sorriso além das funções do porteiro.
Estás zangado com o FMI.
Sabes, até tens razão. Deixa-me dizer-te uma coisa sobre o problema do FMI: têm
muitos franceses. Sabes, desde que meteram lá um relações públicas, uma espécie
de Constâncio a que chamam Director Geral, o indivíduo manda uns bitaites, como
se fosse um político demagogo sedento do voto popular, daqueles que nós,
camarada FF, nós não gostamos. Os marmelos escolheram, desde 1946, 5 franceses,
2 suecos, 1 belga, 1 holandês, 1 alemão e 1 espanhol. Como vês, é muito
francês. Os dois últimos, Strauss-Kahn e Lagarde, têm um problema de verborreia
disléxica. Como tu, camarada. Dizem umas coisas gerais, como a austeridade ser
má, porque gostam de ser populares. Como eu, quando me farto da chuva e exijo o
fim do Inverno em Janeiro. Como tu, camarada, que também não gostas de estar
sob o escrutínio do “quem é este parvo com salário e que defende o que não
pratica”. Eu compreendo-te, camarada. Sabes, eu, que abraço o capitalismo que
me permite ler o que escreves, não tenho desses problemas de consciência. Não
tenho que justificar o que possuo como sendo o básico que exijo para os outros
porque, simplesmente, não exijo nada que te onere. Isso permite-me ter os
sapatos que quiser e conseguir comprar, sem me sentir ameaçado a propagar que
todos devem ter sapatos. A última coisa que nós queremos é um ministro a
escolher-nos os sapatos, não é, camarada? Mas deixa-me dizer-te uma coisa:
entendo o teu socialismo, camarada. Também entendo o socialismo da Manuela
Ferreira Leite, Marcelo Rebelo de Sousa e Freitas do Amaral. São como tu,
camarada. Também gostam da popularidade inerente a quem exige ao contribuinte
mais um esforço para que a sua quinta não seja afectada. Não queres perder a
tua quinta para os outros terem sapatos, pois não? Pois não. E deixa-me
dizer-te uma coisa: eu também não.
Sabes, podes ainda não ter
entendido o défice, talvez por isso queiras um maior. Mas deixa-me dizer-te uma
coisa, é que eu explico-te: o défice é a dívida que se acumula num ano, quando
a labuta do camarada proletário não é suficiente para a despesa do camarada
salafrário. Não há qualquer laboratório aqui, ratinhos brancos só as virgens do
Largo do Rato, que assinam documentos que esquecem ter assinado. Sabes, é que
quanto menor for o défice, menos temos que andar a pedir emprestado, com juros,
para pagarmos ao longo do tempo. É que, camarada, ficar a dever uma vez ou
outra, até é aceitável; mas, esperarmos sucessivamente que nos mandem graveto
porque não somos capazes de conter os gastos é, como dizer, mais austeridade a
prazo, percebes? Claro que percebes: não tens os sapatos todos que queres, pois
não?
Lamento imenso que tenhas
“esticado o pernil e apanhado três tipos de cancro”. Talvez um deles tenha
atacado os teus gânglios da base, pondo em causa o GABA. Diz-se que yoga eleva
os níveis de GABA no cérebro mas, admito, nunca vi um caso de Tourette cujas
vocalizações acabassem transcritas num jornal nacional. De qualquer forma,
camarada, os meus sentimentos pelo retesar de pernil. Mas, deixa-me dizer-te
uma coisa: é com resiliência à tracção que o pernil volta às inverdades
narrativas. E nós não queremos isso, pois não?
Um grande, grande abraço, meu
amigo e camarada.
P.S.: apreensivo em relação
aos angolanos?
Título e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias,
19-9-2013
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