sábado, 7 de dezembro de 2013

Menos Islão e mais soluções

Rui Cardoso
Em 1962, João XXIII aproximava a Igreja Católica do mundo moderno com o Concílio Vaticano II. Desapareciam rituais caducos e a Igreja abria-se à discussão dos problemas do seu tempo, discussão esta que, como se tem visto com as recentes posições de Francisco I, está longe de ter terminado.

Do lado do Islão nada de semelhante aconteceu, até porque, ao contrário da Igreja Católica, não há hierarquia centralizada nem diretivas globais em matéria de doutrina (pelo menos entre os sunitas, corrente majoritária). Confrontam-se terroristas bem conhecidos e adeptos da jihad (guerra santa), aos quais os moderados acham chegada a hora de reagir.

Como explica Hussein Ibish, do sítio libanês de internet Now, “é ridículo explicar Islão e terrorismo, como se fossem sinónimos. Há inúmeros outros terroristas e adeptos do assassinato como forma de política. E, como é evidente, os extremistas muçulmanos violentos não são, apenas, uma minoria no mundo islâmico: são uma minoria dentro de uma minoria.” Por isso, os piores detratores do Islão acabam por ser os que invocam esse credo para levar a cabo ações violentas que só reforçam no Ocidente as correntes anti-islâmicas mais primárias. Pense-se no atentado dos irmãos Tsarnaev na Maratona de Boston.

Isso não significa que não seja necessária uma demarcação mais enérgica nos países de maioria islâmica relativamente às perseguições violentas de que são alvo os crentes de outras religiões, a começar pelos cristãos. Mas para isso é necessário um raciocínio de cidadania, ou seja, de que nigerianos, egípcios ou iraquianos o são, independentemente das suas convicções religiosas.

E isso levanta outro problema: o da separação entre Igreja e Estado, satisfatoriamente resolvido no Ocidente desde a Revolução Francesa e a Declaração de Independência norte-americana. Na sequência da Primavera Árabe, a ascensão dos islamitas moderados da Irmandade Muçulmana na Tunísia ou no Egito tinha como programa político “o Islão é a solução”. Depressa se viu que não, porque, à parte a imposição do véu às mulheres ou a censura da livre expressão, não resolveu (antes agravou) nenhum problema económico nem social. Por isso, os descontentes na Tunísia dizem “menos Islão e mais soluções”…

Como refere Hatem Bourial do sítio tunisino Webdo, “chegou a altura de afirmarmos alto e bom som: a Tunísia precisa de menos Islão que cultive a intolerância e a violência e de mais soluções pragmáticas para construir finalmente um Estado moderno e social, sem ditadura e sem pobreza. E não me venham falar de modelo turco nem do dinheiro do Qatar”.

Separar a Igreja do Estado passa, ainda, pela desmontagem da ideia da Sharia (lei islâmica literal) como suposta fonte do direito nos países de maioria muçulmana. Implica, como salienta o professor universitário iemenita Elham Maneh, reconhecer que os textos sagrados “foram escritos por homens e que a versão do Corão aprovada na época do califa Uthman ibn Affan (segundo sucessor de Maomé) é uma cópia oficial do Estado”. Logo, “para nos libertarmos, temos de nos libertar do texto do Corão”. E isso passa por romper com a imagem do homem e da mulher ainda hoje invocados no mundo muçulmano para justificar todas as aberrações: o véu, a reclusão em casa, a excisão… É como se o homem não passasse, por um lado, de um sátiro sedento de sexo e de violação, mas, por outro, de um ser frágil, pronto a sucumbir à sedução pérfida dos olhos ou dos cabelos femininos. Por outras palavras, e como alerta o poeta libanês Saleh Issal, é necessário romper com uma visão medieval e primária do Islão, sob pena de este continuar a ser visto “como uma religião ultrapassada pela História e pela civilização”.
Título e Texto: Rui Cardoso, Editorial da Courrier Internacional, dezembro 2013

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