Thiago Pacheco
A “legítima defesa” entrou na
ordem do dia depois que Gustavo Correa, o cunhado da apresentadora Ana
Hickmann, matou um sujeito que, armado, invadiu o quarto de hotel onde estavam
ela e uma comitiva.
Com os sucessivos recordes de
homicídios – cerca de 60.000 por ano – é fácil constatar que o valor da vida
anda um tanto baixo no Brasil. Já é corriqueiro encontrar na internet vídeos
filmados por câmeras de circuito fechado e telefones celulares em que pessoas
são executadas nas mais diversas situações: desde ladrões surpreendidos por
policiais, passando por policiais executados por criminosos e alcagüetes
torturados e mortos por integrantes das facções que delataram. De um ponto de
vista estritamente “humanista”, seria possível argumentar que o prejuízo – o
encerramento deliberado de uma vida humana – é o mesmo. Será?
Tão banal se tornou o
assassinato no Brasil que não é de se censurar a imaginação por voltar tão
longe quanto Caim e Abel, os fundadores, em nosso imaginário, do assassinato.
Mas se imagine na seguinte situação: você é um ancestral do humano atual
vivendo na era paleolítica. Está em sua caverna, com os outros integrantes do
seu grupo, todos conhecidos, lascando algumas pedras e preparando armas para
sua próxima incursão em busca de alimento. Nisso, ali irrompe, violentamente, o
integrante de outro grupo, hostil ao seu, armado de uma machadinha também de
pedra lascada, e avança brandindo o petrecho em sua direção. O que é que você
faz? Lembrando que, naquela época, hashtags e textões não existiam.
Adiante um pouco o relógio da
história: você é um índio Guarani e está pacificamente sentado no interior de
sua oca quando ela é invadida por temidos Tupinambás, armados de bordunas
eficientíssimas feitas de pau-brasil. Embora pertençam ao mesmo tronco
lingüístico, é de se duvidar que uma boa conversa fosse resolver essa situação
sem haver derramamento de sangue. Vá ainda mais longe, em ambos os sentidos:
você está em um saloon do velho oeste, em plena corrida do ouro, quando um
desafeto seu passa pela porta já sacando o Colt Peacemaker: você hesita ou saca
imediatamente seu Smith & Wesson? Eu gostaria muito de dizer que,
indagadas, 10 entre 10 pessoas diriam que “sim”, que reagiriam prontamente em
todas essas situações. Mas vivemos em tempos estranhos, em que até a mais
instintiva e natural reação do ser humano – reagir a uma agressão injusta em
defesa da própria vida – vem sendo relativizada e “desconstruída”.
A “legítima defesa” entrou na
ordem do dia depois que Gustavo Correa, o cunhado da apresentadora Ana
Hickmann, matou um sujeito que, armado, invadiu o quarto de hotel onde estavam
ela e uma comitiva – que incluía sua irmã, o cunhado, maquiadores e assessores
de imprensa – baleando uma das pessoas e rendendo as demais. Gustavo entrou em
luta corporal com o sujeito, e, na disputa pela arma, o matou com dois tiros na
nuca. O agressor já havia baleado uma pessoa (a esposa de Gustavo) e ameaçava
matar as outras. O que você faria?
A investigação policial
conclui que Gustavo agiu em legítima defesa, isto é, matou uma pessoa em uma
situação em que, se não o tivesse feito, seria morto – ou, no mínimo, seria
obrigado a assistir outras pessoas serem mortas enquanto esperava pela chegada
da polícia. Uma das mais antigas tradições jurídicas é tornar isenta de pena
essa conduta: a defesa da própria vida (ou da de terceiros) de uma agressão
injusta. A noção se auto-complementa: a legítima defesa passa a ser uma
“agressão justa” na medida em que o atacante ameaça a vida da vítima sem uma
razão apta a justificar sua conduta. Por isso é que, quando entra em cena o
“dever legal” de policiais, por exemplo, a reação de criminosos a uma abordagem
nunca será (pelo menos, por enquanto…) entendida como “legítima defesa”: os
criminosos estavam violando a lei, portanto, sua conduta é injusta; a do
policial, ao abordá-lo, constitui cumprimento de sua função e de seu dever
legal.
Seguimos: descobriu-se depois
que o invasor do quarto de Ana Hickmann era um psicopata obcecado pela
apresentadora, que já havia feito ameaças em redes sociais, e que planejou o
ataque procurando saber se no hotel havia detector de metais na portaria, por
exemplo. Nem seria preciso ir tão longe: afinal ele baleou uma pessoa desarmada
dentro do quarto que invadiu. A única arma presente no recinto era a dele,
agressor, tomada a muito custo e em luta corporal. Não parece haver dúvida de
que o ato corajoso de Gustavo Correa é um exemplo perfeito e acabado de
legítima defesa: foi o que concluiu o inquérito policial, depois de perícia
balística que revelou que os tiros que atingiram o invasor não foram “de
execução”, ou seja, disparados de cima para baixo, em situação em que o
alvejado estivesse rendido e ajoelhado, por exemplo. Mas a opinião do delegado
de polícia pelo arquivamento do inquérito foi surpreendentemente ignorada pelo
Ministério Público, como se na tortuosa instrução criminal vindoura fosse
possível descobrir mais do que a investigação policial revelou. Entrevistado, o
promotor responsável pela denúncia – uma espécie de rockstar do tribunal do
júri de sua comarca, com mais de 1.000 julgamentos no currículo – afirmou que,
pelo fato dos tiros terem atingido a nuca do invasor, a legítima defesa estava
descartada. Eu disse acima que me surpreenderia se 10 entre 10 pessoas não
respondessem que “reagiriam” nos exemplos dados de agressão inesperada, mas
nunca subestime o Brasil: entre as reações naturais de indignação pela
apresentação da denúncia por homicídio doloso, muita gente a saudou, afinal,
“dois tiros na nuca não é legítima defesa!”.
É importante esclarecer o
seguinte: a legítima defesa pode ser exercida com excesso, e exemplos de sala
de aula não faltam. Se um sujeito avança em sua direção para agredi-lo com um
travesseiro, atirar nele com um fuzil não é uma resposta proporcional. O art.
25 do Código Penal determina que “entende-se em legítima defesa quem, usando
moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou
iminente, a direito seu ou de outrem”. Grosso modo, uma agressão injusta feita
com um travesseiro deve ser devolvida com um meio parecido – uma almofada, uma
toalha molhada, um sapato? – e não com uma escopeta. O ponto é: é possível
matar com um travesseiro? Só se você estiver dormindo e for asfixiado pelo
agressor. Em igualdade de condições, presume-se que não. Assim, se alguém o
ataca com um travesseiro, é condição para a que a defesa seja legítima que a
agressão seja repelida com meios proporcionais: afinal, a ameaça feita com um
travesseiro não é de morte; no máximo, de indignidade (e felizmente a “legítima
defesa da honra” é página virada).
Voltemos ao caso concreto:
rendido por um agressor, você, sua esposa (já baleada) e outras pessoas
inocentes e desarmadas estão sob a mira de uma arma de fogo. O que é que você
faz? Gustavo Correa se lançou sobre o atirador, lutou com ele, e na briga pela
arma, na luta corporal renhida, de vida e morte, conseguiu disparar duas vezes
em direção da cabeça do invasor, que estava intento em matar os ocupantes do
quarto (já havia baleado um deles). Os tiros o atingiram na nuca; foram
disparados – a perícia provou – enquanto Gustavo lutava para não morrer (e
evitar que outros ocupantes do quarto fossem alvejados). Legítima defesa,
certo? Para o promotor rockstar e muita gente na internet, não. Nasce no pé
mais uma jabuticaba brasileira: se você toma a única arma no recinto, trazida
pelo agressor, e, em luta corporal, o atinge na região da cabeça, você não está
em “legítima defesa” – é homicídio doloso, é assassinato. Você deveria esperar
a polícia; pacientemente, observar sua esposa baleada e os demais ocupantes do
quarto serem executados, um a um, enquanto a ajuda estatal não chega. Se
atracar com um homem armado – evidente ato de coragem – se torna opressão.
Entram na equação, aí, outros elementos, que deveriam ser absolutamente
estranhos à noção de legítima defesa: a condição sócio-econômica dos
envolvidos. Nesse sentido, a decisão do promotor de justiça rockstar é um
tijolo da construção em que legítima defesa vai passar a ser aferida com a
comparação das declarações de imposto de renda das partes envolvidas: se quem
se defende é cunhado de uma pessoa bem-sucedida, e quem ataca é de família
humilde, a legítima defesa deixa de sê-lo: a luta de classes substitui a luta
pela vida. É exatamente o que está acontecendo nesse caso. E isso é
extremamente pernicioso, e um sinal mais do que claro que o direito – em uma de
suas instituições mais antigas e transcendentais – está sendo infectado pela
mentalidade do marxismo cultural, que força a luta de classes a tudo.
Volte um pouco mais no tempo:
Abel não reagiu porque Caim era seu irmão. Não acreditou no que estava
acontecendo, e enquanto pensava nisso, passou tempo suficiente para que fosse
morto. Foi morto por algumas moedas – e assim nasceu o assassinato. Você está
disposto e a ser o próximo Abel?
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