Não sei o que é mais triste: se a noite
escura que desce sobre o nosso tempo estar longe de se limitar a Portugal, ou
se em Portugal, acanhado e pobre, a noite ser de um breu sem luz nem esperança.
Alberto Gonçalves
Há dias, o “Público” informava
com entusiasmo: “Governo chama universidades para vigiar discurso de ódio”.
Isto é tão bizarro que é difícil decidir por onde começar, embora não custe
imaginar como acabará. E quem diz bizarro diz errado. E equívoco. E repugnante.
E assustador. E os adjetivos que pudermos inventariar até nos cortarem o pio.
Em primeiro lugar, a ideia não
caiu do céu. Caiu da boca de uma ministra qualquer, que pouco antes havia
anunciado a intenção de vistoriar as “redes sociais” para colher informações
acerca dos cidadãos que, aqui e ali, emitem palpites dissonantes da cartilha em
curso. Dado que, ao contrário do que seria saudável em lugares civilizados, a
intenção não levou às ruas multidões furiosas, a exigirem a demissão da
ministra ou a imersão da mesma em alcatrão e penas, o governo percebeu que
podia avançar sem chatices na prossecução deste desígnio espiritual.
Em segundo lugar, o “discurso
de ódio” não é mais do que as opiniões de que certos indivíduos intolerantes
discordam, ou, no caso, de que um poder intolerante discorda. Os indivíduos
intolerantes, serviçais do poder intolerante, discordam disto. Para eles, o
ódio é identificável (desde que por eles) e objetivo (segundo os critérios
deles). Por isso, informam com uma cara-de-pau digna de registo, a censura da
liberdade de expressão não é censura porque ninguém deve ser livre de exprimir
“ódio”. Ninguém deve ser livre de anunciar que detesta ciganos. E muçulmanos. E
hindus (principalmente, quase exclusivamente, o dr. Costa). E pretos (exceto os
reacionários). E judeus (exceto os “sionistas”). E gays (exceto se presos em
Cuba). E estrangeiros (exceto os que votam em Trump, Bolsonaro, Orban, Johnson
e nos governos que não querem deixar vir dinheiro ou turistas para Portugal). E
mulheres (exceto as que tomam banho). E a humanidade em peso (exceto a parte da
humanidade que não partilha os gostos da parte da humanidade empenhada na
perseguição). Em suma, o “discurso de ódio” é aquilo que é dito pelas pessoas
que os censores do “discurso de ódio” odeiam.
Em terceiro lugar, as
“universidades” não “vigiam” o “discurso de ódio”, por iniciativa própria ou a
mando dos que mandam. Se vigiam, não são universidades. As universidades de
facto estimulam justamente o debate e o confronto, não a castração e a
unanimidade. As instituições a que o “Público” se refere e o governo recorre
assemelham-se, suponho, a polícias políticas, entregues a jagunços com vocações
primitivas. “Jagunços” é um eufemismo. “Primitivos” também.
Recentemente, um acadêmico,
Riccardo Marchi, escreveu um livro acerca do Chega. Não conhecia o acadêmico e
não aprecio o Chega. Mas tenho uma vida, sem vagar para desenvolver apetites de
calar o próximo. Pelo menos 67 autodesignados “investigadoras e investigadores”
obviamente não têm vida e subscreveram uma carta (publicada adivinhem onde) a
explicar que “a produção de conhecimento acadêmico não se coaduna com
propósitos de normalização, legitimação e branqueamento de um partido racista e
com desígnios antidemocráticos”. Não, não se trata do Partido Socialista Unido
da Venezuela, do Hamas, do Podemos ou do Bloco de Esquerda: é só o partido
daquele moço do Benfica, vigiado e condenado por vultos com – aposto e ganho um
dinheirão – um belo currículo em matéria de antissemitismo e totalitarismo.
Em quarto lugar, é notável o
entusiasmo do “Público” na divulgação da notícia, enquadrada, eu fique
vesguinho, na secção “Direitos Humanos”. O “Público” não acha que a criação
governamental de um sistema de censura constitua uma ameaça aos direitos
humanos: acha que é uma forma de os proteger. E lança foguetes alusivos. Salvo
em cantinhos raros, o jornalismo, à semelhança do telégrafo e do dodó,
extinguiu-se. O que as televisões e a imprensa “tradicional” hoje fazem nem
sequer tentam disfarçar os respectivos propósitos: agradar aos donos, definir a
“linha justa”, espalhar um pensamento único.
É fácil ridicularizar os
beatos da moral. É igualmente fácil esquecer o perigo que representam. Por um
lado, são bafientos e boçais, indignados e infantis, puritanos e paranoicos,
características que, na disposição adequada, divertem. Por outro lado, porém,
são gente sem escrúpulos e com uma propensão para o fanatismo susceptível de
alimentar diversos ramos da psiquiatria. Convinha que não nos iludíssemos. Os
ministros que reclamam censura, os “universitários” que se dispõem ao trabalho
sujo, os “jornalistas” que se curvam em vênias, os anônimos que denunciam
páginas nas “redes” não são simples artistas de variedades: são a subespécie
omnipresente nos momentos vergonhosos da História, a corja que se purifica
através da destruição alheia.
Não precisamos recuar à
Inquisição para amanhar comparações com os Torquemadas vigentes. Ou apelidá-los
de fascistas. Os marxistas que promovem a moderna queima dos hereges
inscrevem-se na longa tradição marxista da opressão, do silêncio e das trevas.
Logo, dizê-los “marxistas”, ou “comunistas”, ou, pelo andar das coisas,
“socialistas” está muito bem: é descritivo, exato e insultuoso.
Não sei o que é mais triste:
se a noite escura que desce sobre o nosso tempo estar longe de se limitar a
Portugal, ou se em Portugal, acanhado e pobre, a noite ser de um breu sem luz
nem esperança. O que vale é que o povo já dorme.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
18-7-2020, 0h24
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O problema, para o esquerdalho, é que isto normalmente faz ricochete:
ResponderExcluirhttps://toranja-mecanica.blogspot.com/2020/07/o-problema-para-o-esquerdalho-e-que.html
O Rectângulo(a que se chama país) é um sítio de bananas "governado" por sacanas desde o século XIX,logo a realidade actual(e a próxima) não nos deve admirar,em especial depois das quadrilhas politicas formadas no pós abrilismo.
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