terça-feira, 14 de julho de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Como foi mesmo que eu me perdi de tudo?

Aparecido Raimundo de Souza

DA VARANDA DO MEU APARTAMENTO, olho compridamente para um ponto fixo bem longe que se descortina diante de mim. Desde aí, pareço suscitar, numa espécie de devaneio maquinal, um espaço oculto dentro de meu ser, onde alguma coisa que nele está aprisionada, quer se libertar de qualquer jeito, a ponto de me fazer alcançar, custe o que custar, o desiderato, como se fosse um sonho adormecido e não realizado que há muito desejei, em louca ambição. Não sei exatamente o quê. Alguma coisa, por certo, que me fez viajar além do descomedido, à custa de me fumegar por dentro, como um brandão que iluminasse uma áurea abandonada.

Num primeiro momento, tenho a impressão de ter acordado de um sono profundo. Melhor me expressando, voltado de um repouso recuperatório e, ao ter aberto os olhos, incrivelmente percebido robustas vibrações de medo. Medo e vazio. Medo por voltar de onde estava, assim, sem mais nem menos, e vazio, por senti-lo forte e horrendo, e não só isto, cheio de dimensões gigantescas. Tudo, num repente, se faz agora e, dentro dele, sessenta e sete anos parecem ter sido jogados fora. Literalmente lançados nas sarjetas da vida. Grosso modo, pareço bastante com aquela figura metálica do homem armado que, nos relógios antigos, dava as horas com um martelo e nossos avós apelidaram de jaquemart.

Me vejo caminhando por uma estrada de compleição agrestemente chucra e tosca, os passos incertos, sem vislumbrar um porto seguro onde estancar esta dor forte e imensa que se alojou em mim e, contra a minha vontade, insiste permanecer sem pressa de ir embora. Esta dor estranha, esquisita,  fez de meu espírito  seu templo doméstico. Me sinto, por conta, como se tivesse a alma  alanceada por uma batalha da qual não participei, mas saí dela mortificadamente oprimido e derreado. Parece haver uma contenda acirrada, que não se define,  entre meu ser asfixiado e o meu agora -, meu agora desprovido de fôlego para continuar na peleja.

Esta dor parece também, lado outro, crescer como um tumor malígno, e, ao tempo em que evolui, me dá sinais de querer desgraçar a alma frangalhada e me colocar num buraco negro e inóspito, de onde tenho a impressão não haver retorno. Dentro da minha cabeça, uma confusão de ideias e pensamentos embaralhados tenta, a todo custo, me aniquilar, enquanto o coração, no peito, fortemente  descompassado e, numa aceleração centuplicada, me apavora e não só  isto, me tira fora da normalidade da razão. Todos os cômodos da minha residência, parecem ocupados por velhos fantasmas de semblantes  monásticos, que agora se juntam e me assustam.

Os ruídos ensurdecedores que eles  produzem (numa diversidade de aspectos infernais), irrompem dentro destes meus espaços compostos por (além aqui da varanda), uma sala, três quartos, banheiro e  cozinha, como látegos martirizantes. Esta babel não vêm do motor da geladeira, nem do ventilador. Tampouco do aparelho de ar condicionado. Menos ainda dos pingos que rolam intermitentes da torneira da pia do lavabo que deixei aberta, inda  a pouco, quando  minutos atrás, escovava os dentes. Recordo que passei água num copo onde tomei um gole de café com leite. Os móveis da sala, o sofá, minha cadeira de descanso, a televisão, o som e até meus livros  igualmente entraram no furdunço.

Me dão a impressão de estarem mancomunados com esses espalhafatos horripilantes. Em razão disto, sinto como se, de repente, todos estes contratempos zaragatados houvessem fundidos, numa câmara de som compactada com o intuito único de me enervarem  os ouvidos.  A estuporação que me pesa no corpo, tem um aspecto desfigurado e repugnante. Se assemelha a galhofas inumanas. Como meu rosto, deve estar com uma máscara aterradora. Gelo, paralizando os movimentos. Esfrio o sangue nas veias. Fico como que petrificado, chumbado literalmente subjugado aos ladrilhos do alpendre. Boa parte de mim se acha perdida num emaranhado de quimeras desfeitas.

Um sentimento de urgência se apodera de todo meu eu e tenta me curvar derrubando meu esqueleto de encontro ao rés do chão. Meus movimentos, mesma onda,  se  portam sem ação, tolhidos e entravados, a ponto de não conseguirem mexer  os músculos, ao menos para me divorciarem um pouco dos maus presságios que chegaram e ainda chegam sem prévio aviso. Pareço, de repente, ter morrido. Perdido o ar hospedeiro da respiração,  todavia, não deixado o corpo. Não me vejo, não me sinto desvencilhado totalmente do plano terreno. A impressão que tenho é a de estar vagando por sobre toda a minha vida passada...

Vislumbro,  a cada dia, a cada minuto, a cada segundo,  tudo assim, numa  espécie de filme colorido como se voltasse literalmente no tempo. Nessa regressão, lobrigo  a minha família em pêso. Encontro as minhas ex-mulheres,  topo com meus filhos, meus  netos, cada irmão, cada amigo, enfim, cada aparentado antes distante, agora tão pertos... Pessoas que conheci por acaso no acaso do meio da rua, no bar da esquina, na padaria, no supermercado sem troca de olhares, sem gestos ou palavras... Bispo, numa rápida de visu, minha mãe, imponente como a Vênus de Nilo, de natureza inata, acomodada num lugar especial, solitária, como sempre,  na sua serenidade ímpar.

Meu pai, também se faz materializado, o sorriso entristecido. Percebo, igualmente, criaturas que  sumiram do mapa, outras que se foram... Por vontade própria... Numa espécie de magia, estão todas aqui diante de mim. Quero gritar, me fazer presente, me fazer ouvir per faz et nefas. Dizer que sinto saudades, que me doi a falta de todo mundo... Me corroi uma tragédia escrita do fundo da subitaneidade dos refrigérios do meu ego.  No instante seguinte, me questiono, boquiaberto, espantado, quase enlouquecido: como foi mesmo que me perdi de tudo? Alguém, por favor, teria como me responder sem imprimir delongas?!  Por certo que não! Que bobo fui, ou...

Resumindo meus dissabores: o escalpelo que a vida me deixou atingiu, em cheio o meu porvir. Foi grandiosa a incisão e acredito que não haja cicatrização para o tamanho da ferida aberta. O fogo selvagem de todos os fracassos se deflagrou em mim. Me debato, ainda agora, na ganga da mediocridade e me sinto ajoelhado diante de um amanhã umbroso e repletado de trevas. Me questiono, por tudo o que vejo e sinto: em que espécie de idiota oblonga enlargado de imbecilidades me transformei? Nada nem ninguém, me responde. E o resto... Bem, o resto ao meu redor são só migalhas do que fui; ciscos de boas lembranças embalsamadas com respingos de árida e nervosa solidão.   

Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 14-7-2020

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