Aparecido Raimundo de Souza
DA VARANDA DO MEU APARTAMENTO, olho compridamente para um ponto fixo bem longe que se descortina
diante de mim. Desde aí, pareço suscitar, numa espécie de devaneio maquinal, um
espaço oculto dentro de meu ser, onde alguma coisa que nele está aprisionada, quer
se libertar de qualquer jeito, a ponto de me fazer alcançar, custe o que
custar, o desiderato, como se fosse um sonho adormecido e não realizado que há
muito desejei, em louca ambição. Não sei exatamente o quê. Alguma coisa, por
certo, que me fez viajar além do descomedido, à custa de me fumegar por dentro,
como um brandão que iluminasse uma áurea abandonada.
Num primeiro momento, tenho a impressão de ter acordado de um sono
profundo. Melhor me expressando, voltado de um repouso recuperatório e, ao ter
aberto os olhos, incrivelmente percebido robustas vibrações de medo. Medo e
vazio. Medo por voltar de onde estava, assim, sem mais nem menos, e vazio, por
senti-lo forte e horrendo, e não só isto, cheio de dimensões gigantescas. Tudo,
num repente, se faz agora e, dentro dele, sessenta e sete anos parecem ter sido
jogados fora. Literalmente lançados nas sarjetas da vida. Grosso modo, pareço
bastante com aquela figura metálica do homem armado que, nos relógios antigos,
dava as horas com um martelo e nossos avós apelidaram de jaquemart.
Me vejo caminhando por uma estrada de compleição agrestemente chucra e
tosca, os passos incertos, sem vislumbrar um porto seguro onde estancar esta
dor forte e imensa que se alojou em mim e, contra a minha vontade, insiste permanecer
sem pressa de ir embora. Esta dor estranha, esquisita, fez de meu espírito seu templo doméstico. Me sinto, por conta,
como se tivesse a alma alanceada por uma
batalha da qual não participei, mas saí dela mortificadamente oprimido e
derreado. Parece haver uma contenda acirrada, que não se define, entre meu ser asfixiado e o meu agora -, meu
agora desprovido de fôlego para continuar na peleja.
Esta dor parece também, lado outro, crescer como um tumor malígno, e, ao
tempo em que evolui, me dá sinais de querer desgraçar a alma frangalhada e me
colocar num buraco negro e inóspito, de onde tenho a impressão não haver
retorno. Dentro da minha cabeça, uma confusão de ideias e pensamentos
embaralhados tenta, a todo custo, me aniquilar, enquanto o coração, no peito,
fortemente descompassado e, numa
aceleração centuplicada, me apavora e não só
isto, me tira fora da normalidade da razão. Todos os cômodos da minha
residência, parecem ocupados por velhos fantasmas de semblantes monásticos, que agora se juntam e me
assustam.
Os ruídos ensurdecedores que eles
produzem (numa diversidade de aspectos infernais), irrompem dentro
destes meus espaços compostos por (além aqui da varanda), uma sala, três
quartos, banheiro e cozinha, como
látegos martirizantes. Esta babel não vêm do motor da geladeira, nem do
ventilador. Tampouco do aparelho de ar condicionado. Menos ainda dos pingos que
rolam intermitentes da torneira da pia do lavabo que deixei aberta, inda a pouco, quando minutos atrás, escovava os dentes. Recordo
que passei água num copo onde tomei um gole de café com leite. Os móveis da
sala, o sofá, minha cadeira de descanso, a televisão, o som e até meus
livros igualmente entraram no furdunço.
Me dão a impressão de estarem mancomunados com esses espalhafatos
horripilantes. Em razão disto, sinto como se, de repente, todos estes
contratempos zaragatados houvessem fundidos, numa câmara de som compactada com
o intuito único de me enervarem os
ouvidos. A estuporação que me pesa no
corpo, tem um aspecto desfigurado e repugnante. Se assemelha a galhofas
inumanas. Como meu rosto, deve estar com uma máscara aterradora. Gelo,
paralizando os movimentos. Esfrio o sangue nas veias. Fico como que
petrificado, chumbado literalmente subjugado aos ladrilhos do alpendre. Boa
parte de mim se acha perdida num emaranhado de quimeras desfeitas.
Um sentimento de urgência se apodera de todo meu eu e tenta me curvar
derrubando meu esqueleto de encontro ao rés do chão. Meus movimentos, mesma
onda, se
portam sem ação, tolhidos e entravados, a ponto de não conseguirem
mexer os músculos, ao menos para me
divorciarem um pouco dos maus presságios que chegaram e ainda chegam sem prévio
aviso. Pareço, de repente, ter morrido. Perdido o ar hospedeiro da
respiração, todavia, não deixado o
corpo. Não me vejo, não me sinto desvencilhado totalmente do plano terreno. A
impressão que tenho é a de estar vagando por sobre toda a minha vida passada...
Vislumbro, a cada dia, a cada
minuto, a cada segundo, tudo assim,
numa espécie de filme colorido como se
voltasse literalmente no tempo. Nessa regressão, lobrigo a minha família em pêso. Encontro as minhas
ex-mulheres, topo com meus filhos, meus netos, cada irmão, cada amigo, enfim, cada
aparentado antes distante, agora tão pertos... Pessoas que conheci por acaso no
acaso do meio da rua, no bar da esquina, na padaria, no supermercado sem troca
de olhares, sem gestos ou palavras... Bispo, numa rápida de visu, minha mãe,
imponente como a Vênus de Nilo, de natureza inata, acomodada num lugar especial,
solitária, como sempre, na sua
serenidade ímpar.
Meu pai, também se faz materializado, o sorriso entristecido. Percebo,
igualmente, criaturas que sumiram do
mapa, outras que se foram... Por vontade própria... Numa espécie de magia,
estão todas aqui diante de mim. Quero gritar, me fazer presente, me fazer ouvir
per faz et nefas. Dizer que sinto saudades, que me doi a falta de todo mundo...
Me corroi uma tragédia escrita do fundo da subitaneidade dos refrigérios do meu
ego. No instante seguinte, me questiono,
boquiaberto, espantado, quase enlouquecido: como foi mesmo que me perdi de
tudo? Alguém, por favor, teria como me responder sem imprimir delongas?! Por certo que não! Que bobo fui, ou...
Resumindo meus dissabores: o escalpelo que a vida me deixou atingiu, em
cheio o meu porvir. Foi grandiosa a incisão e acredito que não haja
cicatrização para o tamanho da ferida aberta. O fogo selvagem de todos os
fracassos se deflagrou em mim. Me debato, ainda agora, na ganga da mediocridade
e me sinto ajoelhado diante de um amanhã umbroso e repletado de trevas. Me
questiono, por tudo o que vejo e sinto: em que espécie de idiota oblonga
enlargado de imbecilidades me transformei? Nada nem ninguém, me responde. E o
resto... Bem, o resto ao meu redor são só migalhas do que fui; ciscos de boas
lembranças embalsamadas com respingos de árida e nervosa solidão.
Título e texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo, 14-7-2020
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