sexta-feira, 3 de julho de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Hóspedes inesperados

Aparecido Raimundo de Souza

PELAS JANELAS ENORMES DA MINHA SALA, percebo que a chuva e o vento, lá fora, não parecem querer parar de um momento para outro. Sentado na minha cadeira predileta, de frente para a cidade envolta, lá embaixo por pesadas núvens escurecidas, leio um romance que faz tempo esperava na fila. De repente,  do nada, batidas se fazem presentes na porta.

Não me recordo ter ouvido o Asdúbral avisado que alguém estivesse subindo para meu apartamento. Procuro fingir não haver ninguém em casa. Quem sabe despiste e a criatura desista. Continuo deslindando meu livro. E a chuva, agora mais forte. Geralmente, quando me atenho à viajar numa história, mantenho uma cumpricidade bastante objetiva com o autor.

Uma forma de me enquadrar dentro da narração, viajando na imaginação do escritor. Desta forma, inteirado corpo e alma no conteudo do texto, sinto a sensação perene como se estivesse embarcado numa viagem à parte, não no meu mundo real.

Me entrelaço, então, num espaço ilusório. Vivo, junto com os personagens, todas as emoções intensas escudadas numa espécie de eloquência febril e elevada, tão arrebatada e desvairada, quanto inconsequentemente frenética e incandescente.

A concentração, todavia (contra a minha vontade), se desfoca das páginas e, de novo, novas batidas me chegam aos ouvidos. Penso seja alguém aqui do prédio,  quem sabe  um vizinho de porta. De outro modo, vivalma passaria pelos olhos atentos  do Asdúbral,  o porteiro, a menos que ele avisasse da chegada, fosse lá de quem ousasse dar as caras.

Ainda que eu não tivesse ouvido, por qualquer motivo, a campainha do interfone (lá na cozinha, baseada perto da geladeira), a Areta, minha empregada, com certeza teria atendido e, ato contínuo, se fosse coisa urgente, viria me avisar. Areta procura me poupar desses inconvenientes, despachando os intrusos sem me consultar.

São ordens expressas minhas. Sabe, de antemão, quando estou lendo, ou escrevendo (escrevendo, principalmente), não gosto de ser interrompido ou perturbado. As batidas na porta, entretanto, se fazem mais acentuadas e insistentes. Parece, seja lá quem for, apressado  em me falar.

Acomodado e sem vontade de levantar, me vejo obrigado a fazê-lo correndo até Areta:
- Por favor, minha linda, veja quem está na porta da sala.
Areta concorda com um aceno de cabeça. A jovem prepara o jantar. Pelo cheiro que sobe das panelas, as guloseimas me deixam com água na boca.

Ela desliga duas das quatro bocas do fogão e acorre enxugando as mãos no avental. Volta segundos depois sinalizando não existir ninguém na entrada social:
- O senhor se enganou. Talvez algum barulho em outra unidade... Deve ter lhe dado a impressão de ser aqui.
Concordo com Areta e retorno à leitura.

Uma vez mais as batidas se fazem ruidosas, agora com demorada insistência,  sobrepondo as investidas anteriores:
- Areta, Areta...
Desta feita, ausente às minhas chamadas, ela não responde.

Soltando uma série de impropérios, esqueço o romance na mesinha ao lado da cadeira e acorro atender. Viro a chave, destravo a porta e escancaro o corredor escuro:
- Quem está aí?
Não obtenho resposta. A minha certeza se faz concreta quando, ao imprimir dois passos à frente, fora do meu território, o sensor de presença ilumina o ambiente de mim até os elevadores.

De fato, ninguém. Nada. Fecho a porta e retorno à Richelle Mead. Devo ter ouvido batidas, ou ruídos, sei lá, como disse Areta, em outro lugar, em outro loft, quem sabe ao lado, no andar de cima, ou talvez, apenas a minha imaginação me pregando peças.

Pode ser, igualmente, desvairamentos produzidos pela chuva caindo cada vez mais forte, escorrendo como lágrimas tristes no rosto molhado dos vidros que compõem o extenso das janelas. Ou Lucíferes tonitruantes disfarçados em peles de cordeiros.

Esqueço os incidentes das interrupções e mergulho no romance. As agressões, porém, em face do meu portal, persistem em não continuarem no anonimato. Exprimo preocupações. Estarei ficando maluco, capturando  sons inexistentes e, ao me colocar diante deles, não topar com a criatura que as tivesse produzido?  Vasculho a mente numa pesquisa vapt-vupt.

Me questiono, meio que abobado: será que ouvi, de fato, alguma coisa? Não, não foi engano! Mas como não? Se fizeram tão nítidas... Abro e, como por encanto, nada. Antes de me recolher, certifico que, realmente, o que ouvira, ou achara que me chegara aos órgãos da audição, não ia além de confusões corriqueiras. Estava vendo chifre em cabeça de cavalo, onde nem lugar para animais havia. 

Meu equilíbrio momentaneamente deve ter saído do prumo e se tornado bizarro e eu, com certeza, por me atrever dando trelas a ele, e, pior, vivificado a própria imbecilidade de construir fantasmas onde sequer existiam espectros de assombrações, viajei feio na maionese. Poderiam (por que não??!!) ser bobeiras e traquinagens ligadas ao romance que lia. 

Com certeza, por que não pensei nessa possibilidade? A personagem principal, Georgina Kincaid, uma súcubo a serviço do inferno, pressionada pelo seu chefe, me deixara irritado. Justamente quando ela pretendia voltar às boas com seu grande amor, o escritor Seth Mortensen, o capeta lhe mandara uma carta de última hora lhe obrigando a se transferir para Las Vegas.

Talvez essa passagem do livro me tenha feito construír distorções inexistentes, a ponto de achar ter construído  investidas equivocadas, vindas da porta social que desembocava naquele acesso imenso, onde somente o silêncio se via quebrado em face do barulho do temporal que controlava o tempo,  e me pregava peças à torto e a direito, desviando a minha  atenção de leitura tão agradável e aprazível.

Tento esquecer o incidente me embrenhando sem mais delongas no capítulo seguinte, o oitavo. De novo, as malditas  surras com os nós dos dedos,  em desagradado repeteco.  Não mais suaves, agora, ao contrário, horrivelmente acentuadas e  mais insistentes que as abalroadas preliminares. Minha paciência cada vez mais fria e eu não querendo acender meu fogo. 

Pela milésima vez, até a conta de quantas vezes abri e fechei a porta e nada, me deixou deveras encafifado. Me permiti  escapar uma série de impropérios, ao tempo em que escancarado, junto com a porta, mandei bala me enfurecendo em gritos tresloucados: “Quem é o desocupado que está me torrando o descanso?” - Por certo, não havia nenhum idiota no corredor.

Me dispus, desta feita, ir até o elevador conferir. Nada. Abri a “porta de corta-fogo”de acesso às escadas. Ninguém. “Se baterem de novo – bradei em alto e bom som -, darei uns tiros. Meu revólver está logo ali, ao meu alcance, pronto para ser usado. Droga!”. Me apresto a voltar, os passos firmes, galgando o pequeno âmbito do elevador até minha entrada. “Seja quem for, repito fingindo zanga - que vá perturbar o raio que o parta”.

Estava quase a fechar a porta, de vez, junto com as minhas frustrações, quando ouço aquela vozinha rouca. Todo o sangue de meu corpo sobe à cabeça. Berro: “Quem é?!” - Torno a me esgoelar, desconfortável: “Quem éééééééé??!! - Nessa hora, a revelação. Meu bom humor some. Aquela voz oculta testa a minha paciência, agora literalmente impaciente:

“Senhor, não feche a porta. Deixe-nos entrar. Está frio, muito frio aqui fora. Por tudo quanto é mais sagrado. Nos dê abrigo”.
Minhas opões se fazem limitadas. Fechar a porta? Não fechar?! Prescrutar de novo?  - “Por favor, nos deixe entrar...” -  Repete a voz, agora literalmente chorosa:   “Por favor... Minha esposa está grávida...”.

A me virar, vago temor me assalta. Acendo a luz do hall. Claridade e sombra brincam aureoladas no rosto dele. Ou melhor, no semblante deles. Quase tenho um troço. Topo, incontinenti, com um casalzinho de pernilongos, ambos tremendo de frio. 


Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 3-7-2020

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