sexta-feira, 26 de junho de 2020

[Aparecido rasga o verbo] A falta que ela me faz

Aparecido Raimundo de Souza

A MULHER QUE ESTÁ baseada ao meu lado, jantando junto comigo, não é uma simples representante do belo oposto. É uma prenda. Aliás, ela é mais que isto. Eu a classificaria como uma dádiva de natureza incomum. Como um amuleto que a gente ganha na sorte grande e traz para dentro de casa. E depois colocamos com carinho, em cima da mesinha, no centro da sala, na estante de livros, ou sobre a cama, para ajudar a melhorar os espaços límbicos, ou o visual dos travesseiros e da colcha de retalhos tornando o sombrio melancólico do quarto mais agradável e aconchegante.

Ela se assemelha a um dos muitos quadros de Caravaggio como seme  contemplasse do hall frenteado para a porta da entrada principal do meu pub, com a sua moldura impecável  e as feições de uma princesa recém chegada de algum castelo encantado. A mulher que está ao meu lado, sentada e jantando comigo, não outra senão a minha secretária do lar, a Berenice. Não sei por qual motivo, ela me lembra carinhosamente os vasos de plantas dispostos na varanda enorme do apartamento. Quando estou lá, além deles, vejo o mar imenso e tenebroso quebrando ondas intermitentes no deserto quilométrico da praia vazia de pessoas. 

Visto do meu peitoril, o escuro do oceano se me apresenta diferente, cheio de mistérios e segredos. Desigual e monstruoso, porque tem vida própria, se move, se renova, se torna ruidoso. Às vezes faz a gente pensar na imensidão incalculável que se perde além do alcance das vistas. Talvez a Berenice seja como as plantas verdejantes e bem cuidadas que sempre se reinventam e se exacerbam a cada novo dia que amanhece deixando tudo mais bonito e aconchegante. O pélago que contemplo da minha sacada, é incomensurável. Não me deixa só a ver navios e gaivotas esculpindo vôos incertos num céu que não se escasseia.

Capturo, no mesmo olhar, um infindável número de canoas jogadas ao longo do extenso das areias brancas que, igualmente, se desolam e se acabrunham ocas de seres que deixaram as suas sujidades quando se foram embora. Só um  fato me chama a atenção. Este imenso de águas de agora, não é o mesmo do albor da minha infância. O Atlantico dos meus idos dos doze para treze anos, carregava um bando de crianças alegres e sorridentes, bem ainda pescadores afoitos e saltitantes vindos dos mais diversos lugares.

Lembro que a galera se aglomerava pelo bem cedo da manhã,  ai por volta das quatro e meia e, a tardinha, com o esconder do astro rei, essas criaturas, como se motivadas pela sintonia do regresso, volviam felizes, com as suas embarcações repletadas por um cardápio de peixes e mariscos os mais variados. Esses cardumes seguiam para um galpão gigantesco, todo em alvenaria, cujas paredes formavam o entreposto. Ficava, a tal construção, erigida ao longo do cais que se desdobrava por toda a rua da Estação.

Ali, nos mais diversos box se comercializavam, como em barraquinhas de feiras-livres, os insumos que os trabalhadores do mar conseguiam arrebanhar com suas redes atiradas em águas longinquas. A rua da Estação, por sua vez, ostentava esse nome, porque dela, os bondes com mais de oito linhas diferentes partiam para  bairros os mais diversos, trazendo e levando almas e sorrisos, alegrias e tristezas, criaturas que se apresentavam para o trabalho por volta das seis horas e a noite regressavam para os aconchegos de seus familiares.

Tudo fazia parte do meu ontem. Não sei porque, ainda agora, tantos anos depois, ainda me pego aqui, abestadamente colado aos pés da mesa. Literalmente acorrentado a ela, plantado com meus botões, enfrentando a solidão,  sem ninguém para conversar, ou trocar idéias, sem a voz amiga da Berenice me pedindo que a acompanhe à algum lugar, fosse para tomar uma cerveja bem geladinha, fosse para comer coisas feitas na hora, à guisa de tira-gostos. Berenice é a minha única salva-vidas pessoal. Brilha, esta jovem de pouco mais de trinta anos. Reluz, com a mesma profundidade dos Ciganos, de Di Cavalcanti.

Ela resplandesce deixando a minha mesa de refeições mais acolhedora e agradável. Não só a mesa. Os aposentos de um modo geral. A cozinha se torna mais bela, os banheiros mais cheirosos, os quartos nos trinques, o passadiço com os ladrilhos brilhando, depois que finaliza, sem reclamar, as tarefas impostas por todas as arrumações necessárias. É ela que, no mesmo tranco do solavanco, cuida das minhas roupas, trata do velho cachorro, do papagaio e também de deixar em ordem, igualmente, o meu escritório, meus amontoados de papeis e livros.

Enfim... Berenice é alta e magra. Sua têz se abre brejeita e empandinada por leves traços infantis, o que me acorre à memória a lembrança de uma mocinha sapecamente mimada. Às vezes, fujo da real e alimento idéias tristes, como se ela, de repente, chegasse e me olhasse dentro da alma e, em seguida, me desse adeus e dissesse: “não voltarei mais. A partir de amanhã  o senhor precisará arranjar uma nova  empregada”. Ela é a minha companheira há mais de cinco anos. A amiga secreta de todas as horas ausentes. Está aqui, e ao mesmo tempo tão distanciadamente divorciada...

Berenice cuida de tudo. Varre, lava, passa, arruma, faz a comida, coloca na mesa, tira os pratos, atende o interfone, traz os jornais e as correspondências. Se presta a ir até a padaria comprar o leite e o pão... Faz as compras do mês no supermercado, tira dinheiro do banco nos caixas eletrônicos, paga as contas. Quando seus afazeres se esgotam, ela se retira sem fazer barulho. Segue indo embora levando consigo a alegria, notadamente a minha, que se fazia afogueada enquanto reinava aqui. Nesse tom, sempre que ela se faz em carne e osso, ou seja, quando se materializa na sua simplicidade, eu me sinto diferente, vivo, o coração pulsando, o amor aflorando como um romance modianesco.

A ponto de, ainda, quando alguma saudade teima em querer fazer frente, ela, como se adivinhasse as minhas fraquezas, me agrada fritando batatinhas, ou estourando pipocas no microondas. Noutras, me presenteia com bolinhos de farinha de trigo; água e sal; que eu chamo de “bate entope”. Parece enxergar além das aparências e sentir na própria pele quando não estou bem... Os “bate-entopes”, com os quais  me apazigua a fome, são deliciosos para se tomar com café quente feito na hora. Em resumo, a Berenice, que agora me acompanha nas refeições, sentada junto comigo, no compartilhamento da mesa, é a mulher que está ao meu lado, sempre.

Todavia, apesar de tudo, Berenice é um enfeite. Uma prenda. Desses mimos primorosos que a gente coloca sobre a cama para ajudar a melhorar o visual dos travesseiros e dar um tcham nas chitas de retalhos do lençol e tornar o aposento de dormir mais agradável. O resto, se eu esmiudar na ponta do lápis - , Meu Deus -, se eu fizer isto, será somente a maldita e desgastante desilusão que aflorará e se espalhará por todos os recantos, como uma sombra negra, perniciosa, e inexplicável que cairá por sobre minha cabeça e tomará conta de tudo. Se tal desgraça ocorrer, sem medo de errar, eu diria que seria o meu fim.           

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito Santo, 26-6-2020

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