Aparecido Raimundo de Souza
A MULHER QUE ESTÁ baseada ao meu lado, jantando junto comigo, não é uma simples
representante do belo oposto. É uma prenda. Aliás, ela é mais que isto. Eu a
classificaria como uma dádiva de natureza incomum. Como um amuleto que a gente
ganha na sorte grande e traz para dentro de casa. E depois colocamos com
carinho, em cima da mesinha, no centro da sala, na estante de livros, ou sobre
a cama, para ajudar a melhorar os espaços límbicos, ou o visual dos
travesseiros e da colcha de retalhos tornando o sombrio melancólico do quarto
mais agradável e aconchegante.
Ela se assemelha a um dos muitos quadros de Caravaggio como seme contemplasse do hall frenteado para a porta
da entrada principal do meu pub, com a sua moldura impecável e as feições de uma princesa recém chegada de
algum castelo encantado. A mulher que está ao meu lado, sentada e jantando
comigo, não outra senão a minha secretária do lar, a Berenice. Não sei por qual
motivo, ela me lembra carinhosamente os vasos de plantas dispostos na varanda
enorme do apartamento. Quando estou lá, além deles, vejo o mar imenso e
tenebroso quebrando ondas intermitentes no deserto quilométrico da praia vazia
de pessoas.
Visto do meu peitoril, o escuro do oceano se me apresenta diferente,
cheio de mistérios e segredos. Desigual e monstruoso, porque tem vida própria,
se move, se renova, se torna ruidoso. Às vezes faz a gente pensar na imensidão
incalculável que se perde além do alcance das vistas. Talvez a Berenice seja
como as plantas verdejantes e bem cuidadas que sempre se reinventam e se
exacerbam a cada novo dia que amanhece deixando tudo mais bonito e
aconchegante. O pélago que contemplo da minha sacada, é incomensurável. Não me
deixa só a ver navios e gaivotas esculpindo vôos incertos num céu que não se
escasseia.
Capturo, no mesmo olhar, um infindável número de canoas jogadas ao longo
do extenso das areias brancas que, igualmente, se desolam e se acabrunham ocas
de seres que deixaram as suas sujidades quando se foram embora. Só um fato me chama a atenção. Este imenso de águas
de agora, não é o mesmo do albor da minha infância. O Atlantico dos meus idos
dos doze para treze anos, carregava um bando de crianças alegres e sorridentes,
bem ainda pescadores afoitos e saltitantes vindos dos mais diversos lugares.
Lembro que a galera se aglomerava pelo bem cedo da manhã, ai por volta das quatro e meia e, a tardinha,
com o esconder do astro rei, essas criaturas, como se motivadas pela sintonia
do regresso, volviam felizes, com as suas embarcações repletadas por um
cardápio de peixes e mariscos os mais variados. Esses cardumes seguiam para um
galpão gigantesco, todo em alvenaria, cujas paredes formavam o entreposto.
Ficava, a tal construção, erigida ao longo do cais que se desdobrava por toda a
rua da Estação.
Ali, nos mais diversos box se comercializavam, como em barraquinhas de
feiras-livres, os insumos que os trabalhadores do mar conseguiam arrebanhar com
suas redes atiradas em águas longinquas. A rua da Estação, por sua vez,
ostentava esse nome, porque dela, os bondes com mais de oito linhas diferentes
partiam para bairros os mais diversos,
trazendo e levando almas e sorrisos, alegrias e tristezas, criaturas que se
apresentavam para o trabalho por volta das seis horas e a noite regressavam
para os aconchegos de seus familiares.
Tudo fazia parte do meu ontem. Não sei porque, ainda agora, tantos anos
depois, ainda me pego aqui, abestadamente colado aos pés da mesa. Literalmente
acorrentado a ela, plantado com meus botões, enfrentando a solidão, sem ninguém para conversar, ou trocar idéias,
sem a voz amiga da Berenice me pedindo que a acompanhe à algum lugar, fosse
para tomar uma cerveja bem geladinha, fosse para comer coisas feitas na hora, à
guisa de tira-gostos. Berenice é a minha única salva-vidas pessoal. Brilha,
esta jovem de pouco mais de trinta anos. Reluz, com a mesma profundidade dos
Ciganos, de Di Cavalcanti.
Ela resplandesce deixando a minha mesa de refeições mais acolhedora e
agradável. Não só a mesa. Os aposentos de um modo geral. A cozinha se torna
mais bela, os banheiros mais cheirosos, os quartos nos trinques, o passadiço
com os ladrilhos brilhando, depois que finaliza, sem reclamar, as tarefas
impostas por todas as arrumações necessárias. É ela que, no mesmo tranco do solavanco,
cuida das minhas roupas, trata do velho cachorro, do papagaio e também de
deixar em ordem, igualmente, o meu escritório, meus amontoados de papeis e
livros.
Enfim... Berenice é alta e magra. Sua têz se abre brejeita e empandinada
por leves traços infantis, o que me acorre à memória a lembrança de uma mocinha
sapecamente mimada. Às vezes, fujo da real e alimento idéias tristes, como se
ela, de repente, chegasse e me olhasse dentro da alma e, em seguida, me desse
adeus e dissesse: “não voltarei mais. A partir de amanhã o senhor precisará arranjar uma nova empregada”. Ela é a minha companheira há mais
de cinco anos. A amiga secreta de todas as horas ausentes. Está aqui, e ao
mesmo tempo tão distanciadamente divorciada...
Berenice cuida de tudo. Varre, lava, passa, arruma, faz a comida, coloca
na mesa, tira os pratos, atende o interfone, traz os jornais e as
correspondências. Se presta a ir até a padaria comprar o leite e o pão... Faz
as compras do mês no supermercado, tira dinheiro do banco nos caixas
eletrônicos, paga as contas. Quando seus afazeres se esgotam, ela se retira sem
fazer barulho. Segue indo embora levando consigo a alegria, notadamente a
minha, que se fazia afogueada enquanto reinava aqui. Nesse tom, sempre que ela
se faz em carne e osso, ou seja, quando se materializa na sua simplicidade, eu
me sinto diferente, vivo, o coração pulsando, o amor aflorando como um romance
modianesco.
A ponto de, ainda, quando alguma saudade teima em querer fazer frente,
ela, como se adivinhasse as minhas fraquezas, me agrada fritando batatinhas, ou
estourando pipocas no microondas. Noutras, me presenteia com bolinhos de
farinha de trigo; água e sal; que eu chamo de “bate entope”. Parece enxergar
além das aparências e sentir na própria pele quando não estou bem... Os
“bate-entopes”, com os quais me apazigua
a fome, são deliciosos para se tomar com café quente feito na hora. Em resumo,
a Berenice, que agora me acompanha nas refeições, sentada junto comigo, no compartilhamento
da mesa, é a mulher que está ao meu lado, sempre.
Todavia, apesar de tudo, Berenice é um enfeite. Uma prenda. Desses mimos
primorosos que a gente coloca sobre a cama para ajudar a melhorar o visual dos
travesseiros e dar um tcham nas chitas de retalhos do lençol e tornar o aposento
de dormir mais agradável. O resto, se eu esmiudar na ponta do lápis - , Meu
Deus -, se eu fizer isto, será somente a maldita e desgastante desilusão que
aflorará e se espalhará por todos os recantos, como uma sombra negra,
perniciosa, e inexplicável que cairá por sobre minha cabeça e tomará conta de
tudo. Se tal desgraça ocorrer, sem medo de errar, eu diria que seria o meu
fim.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, Espírito
Santo, 26-6-2020
Colunas anteriores:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-