domingo, 21 de junho de 2020

[As danações de Carina] Dentro de casa trancada: de onde me virá o socorro?

Carina Bratt

A pandemia está nos deixando fora de órbita. A quarentena isolada do mundo em que vivemos. O desamor e o medo da morte prematura divorciados do planeta Terra que tanto amamos. O lugar onde fomos criados, nossos pais, nossos amigos e vizinhos se esconderam sobre as proteções de portas cerradas, de janelas vedadas e desvãos que não se abrem nem por reza braba.


Do mesmo modo que não se desviam para encararem os jardins floridos de múltiplas cores, bem ali ao nosso lado. Que não contemplam, lá no alto, um céu azul e maravilhoso que nos aplaude todas as vezes que acordamos. Estamos à deriva injustificada de um deus dará, sabe-se lá quando, sem a convicção de “em que dia” voltaremos a ter aquela vidinha plena e pacata de antes.

Quando poderemos, de fato, e por direito, voltarmos a andar pelas ruas livremente, a sentar sem medo nas pracinhas e ler nossos livros preferidos, ou a ver os pássaros cantando nos galhos das árvores?

Inacreditável! Tenebroso. Pior, abissal. Passamos a aceitar como normal enterrar nossos mortos não presencialmente, mas virtualmente, sem os antigos velórios, sem as coroas que emprestavam uma beleza invulgar, mas rara no derradeiro encontro entre a vida e a viagem sem volta.

Ficamos sem poder chorar. Perdemos o arbítrio de depositar beijos nas faces dos “de cujus”. Desquitamos dos abraços de todas as horas. Empurraram nossa coragem para o distante do silêncio sepulcral, e, de roldão, as felicitações (ainda que tristonhas) do último adeus...

O derradeiro “até mais” àqueles que partiam. Todas as pequenas mimosidades que nos rodeavam se incrustaram num tumular pior que os subterrâneos de todas as desgraças que ainda nos restavam (ou nos restam) passar por elas. 

Ficamos até sem aquele momento religioso da missa de corpo presente. Os padres e suas batinas se perderam nas catedrais, os cemitérios se entristeceram vazios de falecidos. As capelas onde antes repousavam os restos dos nossos mais chegados se curvaram às baratas e aos pernilongos.  As nossas ruas e avenidas se acomodaram num mutismo constrangedor.

Os supermercados, as padarias, as farmácias, o comércio, em geral, nos recebem com feições metidas em invólucros esquisitos. Viramos vagabundos de nós mesmos, ladrões do nosso hoje. Nos fizeram prisioneiros do agora. Nos reduziram a nômades, nos desfiguraram e nos transfiguraram em máquinas operárias como nos tempos de Chaplin.

Os olhos esbugalhados que nos contemplam de trás das moitas, dos cantos escuros, dos becos e guetos, incubaram em nossa mente um sentimento mal parido, distante e avesso ao nosso jeito de ser. Diria, caras amigas leitoras que esses olhos (os esbugalhados) perderam o brilho, o alvor de um reconhecimento cíndio à nossa chegada.

A cidade, o bairro, a comunidade onde morávamos, se desfez do viço, se amesquinhou da faiscação, se aniquilou do fulgor, se derrogou da resplandecência que antes era tão corriqueiramente comum. Meu Pai Eterno, a que ponto chegamos? Em que altura do nosso longo caminho nos perdemos da nossa realidade, ou do seu Poder infinito de nos amparar para todo o sempre?

Quem nos devolverá, querido Pai, a vida plena que tínhamos antes da chegada do covid-19? Por conta deste vírus invisível, parecemos insetos rasteiros sempre batendo nos pés dos mesmos móveis.

Descemos ao patamar das almas fustigadas pelas infelicidades do suicídio.  Iguais  moscas nas vidraças, que se agitam, sofrem, definham, se deprimem e se interrogam, questionamos, como se fôssemos elas e  sobre as engrenagens do martírio: o que nos levou, ou o que nos trouxe até aqui,  esse local agourento onde não queríamos ir ou estar?

Essa falsa lucidez da maturidade humana me deixa pasma. Louca varrida. Ah, a eterna e duradoura... A desprezível e ignóbil vacuidade da existência medíocre. Socorro, socorro, me acudam, me ajudem, me tirem daqui...

Libertem meu ser interior. Alforriem minha vida. Devolvam os meus sonhos. O meu direito de ir e vir.  Me restituam a minha autonomia, a minha permissão, a minha licença da felicidade plena.  Ela, a minha Felicidade quer sair urgentemente de casa e voltar a VIVER.

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 21-6-2020

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