Carina Bratt
A pandemia
está nos deixando fora de órbita. A quarentena isolada do mundo em que vivemos.
O desamor e o medo da morte prematura divorciados do planeta Terra que tanto
amamos. O lugar onde fomos criados, nossos pais, nossos amigos e vizinhos se
esconderam sobre as proteções de portas cerradas, de janelas vedadas e desvãos
que não se abrem nem por reza braba.
Do mesmo
modo que não se desviam para encararem os jardins floridos de múltiplas cores,
bem ali ao nosso lado. Que não contemplam, lá no alto, um céu azul e
maravilhoso que nos aplaude todas as vezes que acordamos. Estamos à deriva
injustificada de um deus dará, sabe-se lá quando, sem a convicção de “em que dia”
voltaremos a ter aquela vidinha plena e pacata de antes.
Quando
poderemos, de fato, e por direito, voltarmos a andar pelas ruas livremente, a
sentar sem medo nas pracinhas e ler nossos livros preferidos, ou a ver os
pássaros cantando nos galhos das árvores?
Inacreditável!
Tenebroso. Pior, abissal. Passamos a aceitar como normal enterrar nossos mortos
não presencialmente, mas virtualmente, sem os antigos velórios, sem as coroas
que emprestavam uma beleza invulgar, mas rara no derradeiro encontro entre a
vida e a viagem sem volta.
Ficamos sem
poder chorar. Perdemos o arbítrio de depositar beijos nas faces dos “de cujus”.
Desquitamos dos abraços de todas as horas. Empurraram nossa coragem para o
distante do silêncio sepulcral, e, de roldão, as felicitações (ainda que
tristonhas) do último adeus...
O derradeiro
“até mais” àqueles que partiam. Todas as pequenas mimosidades que nos rodeavam
se incrustaram num tumular pior que os subterrâneos de todas as desgraças que
ainda nos restavam (ou nos restam) passar por elas.
Ficamos até
sem aquele momento religioso da missa de corpo presente. Os padres e suas
batinas se perderam nas catedrais, os cemitérios se entristeceram vazios de
falecidos. As capelas onde antes repousavam os restos dos nossos mais chegados
se curvaram às baratas e aos pernilongos.
As nossas ruas e avenidas se acomodaram num mutismo constrangedor.
Os
supermercados, as padarias, as farmácias, o comércio, em geral, nos recebem com
feições metidas em invólucros esquisitos. Viramos vagabundos de nós mesmos,
ladrões do nosso hoje. Nos fizeram prisioneiros do agora. Nos reduziram a nômades,
nos desfiguraram e nos transfiguraram em máquinas operárias como nos tempos de
Chaplin.
Os olhos
esbugalhados que nos contemplam de trás das moitas, dos cantos escuros, dos
becos e guetos, incubaram em nossa mente um sentimento mal parido, distante e
avesso ao nosso jeito de ser. Diria, caras amigas leitoras que esses olhos (os
esbugalhados) perderam o brilho, o alvor de um reconhecimento cíndio à nossa
chegada.
A cidade, o
bairro, a comunidade onde morávamos, se desfez do viço, se amesquinhou da
faiscação, se aniquilou do fulgor, se derrogou da resplandecência que antes era
tão corriqueiramente comum. Meu Pai Eterno, a que ponto chegamos? Em que altura
do nosso longo caminho nos perdemos da nossa realidade, ou do seu Poder
infinito de nos amparar para todo o sempre?
Quem nos
devolverá, querido Pai, a vida plena que tínhamos antes da chegada do covid-19?
Por conta deste vírus invisível, parecemos insetos rasteiros sempre batendo nos
pés dos mesmos móveis.
Descemos ao
patamar das almas fustigadas pelas infelicidades do suicídio. Iguais
moscas nas vidraças, que se agitam, sofrem, definham, se deprimem e se
interrogam, questionamos, como se fôssemos elas e sobre as engrenagens do martírio: o que nos
levou, ou o que nos trouxe até aqui,
esse local agourento onde não queríamos ir ou estar?
Essa falsa
lucidez da maturidade humana me deixa pasma. Louca varrida. Ah, a eterna e
duradoura... A desprezível e ignóbil vacuidade da existência medíocre. Socorro,
socorro, me acudam, me ajudem, me tirem daqui...
Libertem meu
ser interior. Alforriem minha vida. Devolvam os meus sonhos. O meu direito de
ir e vir. Me restituam a minha
autonomia, a minha permissão, a minha licença da felicidade plena. Ela, a minha Felicidade quer sair
urgentemente de casa e voltar a VIVER.
Título e
Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 21-6-2020
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