O caminho para trocar o presidente por um
outro não é valer-se do submundo da lei criado em Brasília pelo STF
J. R. Guzzo
A política brasileira de hoje
tem apenas uma questão de verdade: o esforço para impedir que as eleições
presidenciais de 2022 aconteçam como está previsto no calendário legal ou, mais
exatamente, para não permitir que o atual ocupante do cargo seja um dos
candidatos. Seus adversários, de todas as naturezas e de todos os cantos da
vida política, não falam abertamente que querem isso. Mas passaram a admitir em
silêncio, cada vez mais, que será preciso encontrar alguma pirueta legal para se
livrarem com 100% de certeza daquele que, em sua opinião, é o causador de todos
os grandes problemas que o Brasil tem hoje. Se nada for feito e as eleições
correrem normalmente, acreditam eles, Jair Bolsonaro vai acabar ganhando — e
mais quatro anos com o homem no governo, além dos dois e meio que ainda tem
pela frente em seu primeiro mandato, é algo que “o país não aguenta”.
Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil |
E por que não aguentaria?
Porque o consórcio político do tipo xis-tudo que se formou contra o
bolsonarismo, sob a liderança e a condução do Supremo Tribunal Federal, não
aceita a ideia de perder seu futuro — ou seja, de passar os próximos seis anos
e meio, e sabe lá quantos mais depois disso, vivendo fora do governo. Como não
quer Bolsonaro, nem as consequências de Bolsonaro, decidiu que o Brasil também
não quer. As palavras-chave em sua campanha são “democracia”, ou “defesa da
democracia”. Resolveu-se que o atual governo é incompatível, simplesmente, com
a manutenção de um regime democrático no Brasil. Nessas condições, definidas
unicamente por eles mesmos, os condutores do bonde anti-Bolsonaro decidiram que
têm o direito de romper com as leis hoje em vigor, pelas quais o presidente
deve ficar em seu cargo até 1º de janeiro de 2023 e pode concorrer à reeleição,
em nome de um “interesse maior” — a salvação da democracia e da pátria.
Nessa tentativa de depor
Bolsonaro antes que ele tenha a oportunidade de ganhar uma segunda eleição está
valendo quase tudo. O presidente não poderia ficar em seu cargo (na verdade,
nem deveria ter assumido) porque teria se beneficiado das fake news,
ou de “notícias falsas”, para se eleger em 2018. Teria de ir embora, também,
por algum dos seguintes motivos: praticou crime “contra a administração
pública” ao demitir o ex-ministro Sergio Moro, apoia “movimentos antidemocráticos”
e aceita seu apoio, nomeou Abraham Weintraub para ministro da Educação,
escondeu “o Queiroz”, não usa máscara contra o coronavírus, conduz o Brasil ao
genocídio, não obedece à ONU, não respeita as “instituições” e por aí se vai.
Tudo serve. É o que o público vê, todos os dias, no noticiário que lhe jogam em
cima. O sujeito oculto da frase, em qualquer das denúncias que aparecem, é
sempre o mesmo: “Esse Bolsonaro não pode ficar”.
O condomínio anti-Bolsonaro quer montar uma trapaça com cara de
“solução legal”
Não haveria problema algum
para a saída do presidente se seu governo fosse realmente o desastre absoluto
apresentado pela mídia, os “formadores de opinião” e os artistas da Rede Globo.
Se o governo é tão ruim assim, a população deveria estar mais do que cheia
dele, não é mesmo? É dado como fato definitivo, provado por “pesquisas de
opinião”, que “70%” dos brasileiros reprovam Bolsonaro e seu governo. Nove
analistas em dez, pelo menos, garantem que este governo “acabou”: vive trocando
de ministro, não é aprovado pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal, tem uma imagem horrível na “mídia internacional”, não tem força
no Congresso, e assim por diante. Então: se é assim mesmo, está tudo mais do
que resolvido. É só esperar mais um pouquinho, até outubro de 2022, fazer as
eleições como a lei manda fazer e 70% dos eleitores vão derrotar os 30% de
bolsonaristas que sobram.
Só que não é assim. O
condomínio anti-Bolsonaro, com certeza, acha que não é — por isso mesmo, e por
nenhuma outra razão, quer montar uma trapaça com cara de “solução legal” para
tirar o presidente do jogo. Os que consideram Bolsonaro uma calamidade para o
Brasil têm, obviamente, todo o direito de pensar assim; é possível, até, que
estejam certos. Mas o caminho para trocar o presidente por um outro de seu
agrado não é valer-se do submundo da lei criado em Brasília pelo STF, com a
cumplicidade das mesas do Congresso, dos meios de comunicação e da elite
intelectual-civilizada do eixo Jardins-Leblon. A única solução legal é ganhar
as eleições livres nas quais a população julgará Bolsonaro, sua conduta e sua
administração. Para isso, é indispensável haver um candidato de verdade, que
seja capaz de apresentar ao eleitorado um programa coerente de governo e dizer,
enfim, o que vai fazer de diferente, ou ao contrário, do que está sendo feito.
Não há no momento nenhum vestígio da existência de qualquer dessas condições.
O STF, sozinho, não tem força para demitir ninguém
A única alternativa, além
dessa, para encurtar o mandato de Bolsonaro e impedir sua reeleição sem rasgar
a Constituição é destituir o presidente através de um processo de impeachment —
algo que exige os votos de dois terços do Congresso e parece uma saída tão
inviável quanto a eleição de 2022. É isso que explica todo esse enorme ruído
que está aí. O tumulto é resultado da incapacidade incurável, por parte das
elites brasileiras, de admitir que o povo, sempre tido como um ente sagrado em
suas fantasias, é responsável pelas decisões eleitorais que toma. Essa
população elegeu há menos de dois anos, com 58 milhões de votos e por maioria
absoluta, um novo presidente; se escolheu mal, então que aguente — e vote
melhor na próxima oportunidade. Não dá, agora, para anular uma decisão popular
desse tamanho com uma fraude jurídica grosseira. O Brasil desaprendeu o que é
fazer oposição, se é que soube um dia — a única forma de alternância de poder
conhecida hoje pelo STF e pelo mundo político que vive em seus subúrbios é
depor os presidentes da República que lhes desagradam. Não é mais uma exceção.
Virou regra.
Como em todo golpe de Estado,
a desculpa para jogar a lei no lixo é a necessidade de “salvar a democracia”. A
Constituição, dizem os ministros do STF que querem virar a mesa, não pode
servir de “proteção” ou de desculpa para um presidente como Bolsonaro e para as
forças “antidemocráticas”. Para preservar as “instituições”, assim, é preciso
violar (só por um momentinho) as instituições; para defender a lei, é preciso
violar a lei, mas também só por um instante, certo? Os onze ministros do STF,
de uns tempos para cá, se declararam os únicos brasileiros capacitados a dizer
o que é bom ou ruim para o Brasil — e, como ninguém diz nada, vai ficando por
isso mesmo.
O STF, sozinho, não tem força
para demitir ninguém — nem para continuar impedindo o governo de governar, como
faz no momento. Vai precisar, mais cedo ou mais tarde, do apoio de quem tem
essa força.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista Oeste,
26-6-2020, 8h49
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