sábado, 20 de junho de 2020

E agora, como vai ser?

Prometeram-nos liberdade e acabamos mais vigiados que nunca. Prometeram-nos igualdade e acabamos divididos em castas. Prometeram-nos paz e acabamos a viver em guerra conosco mesmos. O cerco fechou-se

Helena Matos

O que vai ser? O triunfo da patranhologia da libertação

Como se chamava o rapaz morto há poucos dias pela polícia angolana num mercado de peixe em Benguela? Tinha 14 anos. E o outro de 21 baleado em Rocha Pinto porque não usava máscara, qual era o nome dele? Azar o deles não serem afro americanos em tempos de administração Trump. E aquela mulher que foi espancada pelas forças de segurança na Guiné-Bissau porque não saiu da varanda? Ainda se a agressão pudesse ser enquadrada numa perspectiva dos abusos do colonialismo heteropatriarcal branco!

Um agente de autoridade interpela um jovem no distrito de Kifangondo, em Luanda. Foto: Osvaldo Silva/AFP
Só a geografia mudou na mistificação do alegado combate ao racismo e ao colonialismo porque a mistificação essa mantém-se: há 45 anos gritava-se que África ia ser para os africanos e garantia-se que por todo aquele continente floresciam nações livres. Tudo o que não cabia na grelha da libertação era racismo. Falar daquele que foi talvez o maior massacre de portugueses, o 7 de setembro de 1974 em Moçambique? Era racismo. Denunciar o fuzilamento dos comandos negros das forças armadas portuguesas na Guiné? Era fazer o jogo dos racistas. Avisar para as consequências na vida das pessoas fossem elas negras, brancas ou mulatas da perseguição que estava a ser feita em Angola aos comerciantes? Era racismo. E racismo obviamente era dizer que só havia tirania e cleptocracia nos movimentos que a Europa e os EUA diziam de libertação. (A URSS e a China também, obviamente).

Quando a utopia da libertação de África acabou numa sucessão de regimes grotescos, as periferias urbanas de várias cidades europeias encheram-se de gente que vinha a fugir da miséria e das guerras. Mas continuavam apenas a denunciar-se os crimes do colonialismo e os falhanços do colonialismo. E das libertações que nunca o foram? Quando se faz o balanço dessa tragédia? Os africanos arriscam a vida a fugir do seu continente por quê?

O manto de silêncio que caiu sobre as consequências dessas ditas libertações permitiu a proliferação dessa patranhologia que é a redução da escravatura a um fenómeno de brancos escravizando negros. E permitiu também que a escravatura sobrevivesse nas geografias onde os brancos não podiam ser culpabilizados como é o caso da Mauritânia.

Mas não só, os argumentários vitimistas aí estão de novo como se não tivessem lastro. As consequências de sempre: pobreza e exclusão para os que caem nas malhas dos libertadores. Cátedras, presidências de fundações e centros de investigação para os libertadores. Na Europa e nos EUA, claro. Os afrodescendentes estão a ser a carne para canhão dos libertadores do século XXI tal como os africanos o foram dos libertadores do século XX.

O que vai ser? Tudo será aceite se for apresentado como um combate contra o mal.

O que faria a HBO caso tivesse no seu catálogo um filme sobre dona Ana Joaquina, mulata de Luanda, (1788-1859), rica negociante, proprietária de terras e barcos e uma das maiores comerciantes de escravos do seu tempo?… Pergunto que livros, quadros, estátuas, tapeçarias, filmes… escaparão ao crivo de se achar que o passado devia ser igual ao presente? Discutir o racismo em “E tudo o vento levou” ou o escravagismo do padre António Vieira é uma armadilha porque é aceitar participar num contrassenso: o passado é isso mesmo, passado.

Não diziam que devíamos lutar contra a censura? Não ficaram para trás os tempos do inominável lápis azul? Ora, ora, tudo isso era nos tempos em que a censura era censura e não um combate ao discurso do ódio. Agora a censura chama-se combate ao discurso do ódio e não falta quem se disponha a ser censor – diz-se ativista – em nome desse combate (há mais combates para outras censuras). Empresas, universidades, artistas… correm pressurosos a querer praticá-la. Competem até para ver qual se esforça mais. Qual leva o seu zelo mais longe: enquanto atulham o seu discurso com referências ao que foi proibido no passado eles mesmos estão a proibir conferências e a justificar que se eliminem livros das bibliotecas.

Enganaram-nos não foi? Prometeram-nos um futuro diferente do passado e afinal tudo o que abominamos no passado volta, mas sem vergonha do que é. A HBO justifica com o palavreado de uma redação de escola primária o ter retirado do seu catálogo o “E tudo o vento levou”: “é um filme de época que retrata preconceitos étnicos e raciais que, infelizmente, eram comuns na sociedade americana. Representações racistas que não eram corretas na altura e continuam hoje em dia. A HBO Max acredita que manter o título sem uma explicação ou denúncia das mesmas seria uma irresponsabilidade. Estas representações são contrárias aos valores da WarnerMedia e, por esse motivo, quando a HBO Max voltar a incluir o filme no seu catálogo será mediante uma explicação do seu contexto histórico e de denúncia sobre as mesmas, bem como mostrar como foram originalmente criadas, já que fazê-lo de outra forma seria assumir que estes preconceitos nunca existiram.

Estas turbas ululantes, ignorantérrimas, a tresandarem a superioridade moral, não têm o direito de se impor como tutores do que vemos, ouvimos e estudamos. Muito menos destruir e impor a sua lei particular. Há quem se sinta ofendido? Percebo perfeitamente. Acho insuportavelmente mau e boçal muito do que se vê e ouve por aí. Mas nada me dá o direito de exigir a sua proibição.

O que vai ser? As castas privilegiadas do regime vão lutar para mostrar qual delas manda mais.

Em Lisboa, um prédio ocupado passou midiaticamente em segundos a centro de apoio a carenciados. Por quê? Porque quem o ocupou está do lado certo do poder dentro da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e das redações. Ou seja do BE. Ninguém averiguou porque deixou, em 2016, a CML de apoiar naquela mesma zona de Arroios um centro de apoio aos sem-abrigo que era gerido pela Igreja. (Na época a CML declarou: “há uma metodologia de trabalho do centro paroquial que não se coaduna com o programa municipal de apoio aos sem-abrigo da Câmara Municipal de Lisboa e, aparentemente, não resolúvel“.

Pelos vistos aquele ajuntamento folclórico que agora ocupou o prédio já tem uma metodologia conforme ao programa municipal!) Muito menos alguém teve curiosidade de investigar como estavam a ser aplicadas pelos ocupas as inúmeras normas que regem todo e qualquer um que meta ombros à tarefa de montar um centro de apoio a pessoas sem abrigo fora do ativismo da extrema-esquerda: existia por acaso o processo individual “permanentemente atualizado” de cada utilizador? Estava afixada em local visível a licença de funcionamento? E as “condições, critérios e procedimentos de admissão”? Escusam de dizer que isto não é assim tão importante pois é importantíssimo: se a gestão do dito centro não fosse daquela tropa fandanga era o suficiente para se falar de ilegalidades, situações de risco e choverem ameaças de multas.

Mas se isto é o que aconteceu eis o que vai acontecer: vamos ter mais ocupações. Para já vão-se penalizar as tentativas de desocupação: muito convenientemente os seguranças que fizeram a desocupação do edifício são apontados como podendo ter exercido funções que lhes estão vedadas. Na próxima ocupação dificilmente haverá desocupação. Nos primeiros tempos dirão que no prédio ocupado vai funcionar um centro antirracista; uma associação cultural; um centro de apoio a vítimas… depois nem isso. O BE faz prova da sua superioridade face à lei na Almirante Reis. A CGTP na Alameda. O PCP na Festa. Entretanto a polícia recebe ordens para apreender manjericos de papel nas varandas dos bairros populares. Para o próximo ano os manjericos podem ser obrigatórios. Não interessa: a normalização do absurdo moldou-nos para aceitar os abusos do poder.

O que vai ser? Exigir segurança é um crime para quem vive fora da bolha das castas.

12 de junho. 
Amadora. Homem agride e deixa inconsciente PSP que defendia mulher e bebé. Agressor entrou na habitação da ex-companheira pela janela, onde estava também a filha de ambos, uma bebé com 20 dias. 


Lisboa. Um comerciante foi brutalmente espancado por um cliente, a quem pediu que usasse máscara de proteção contra a Covid-19 para entrar no estabelecimento de que é proprietário, no Campo Pequeno, em Lisboa.

Na cidadela, esse mundo onde a casta põe a máscara para ir de bicicleta ou de carro de serviço aos espetáculos que louvam o regime, logo dirão que estas notícias são populistas. Estes episódios só lhes interessam caso em algum deles se detectem sinais de violência policial. Ou mais grave ainda indícios de que as vítimas reagiram.

Os governos, como acontece com o francês, mandam as polícias carregar sobre os manifestantes quando se sentem diretamente ameaçados. Recordo que esse bem-amado por conta dos euros que hão de vir, ou seja  o presidente Macron, teve de ser retirado de um teatro no meio de uma exibição de força que noutro contexto e com outros protagonistas teria motivado uma cadeia de notícias (estão a ver os títulos com Trump?)


Mas a salvo na sua bolha-cidadela tudo lhes parece excessivo para garantir a segurança a quem tem de usar os transportes públicos, vive nos bairros das periferias ou tem um pequeno comércio e não se pode permitir o luxo de pagar um segurança (em muitos casos, em Portugal já se acumulam seguranças e agentes policiais nos chamados gratificados). Falar sobre a nossa segurança é um direito que deixamos que nos retirassem. Podia ter sido doutro modo, mas preferimos o engano à verdade e o tacticismo à coragem.

O ocidente é hoje uma grotesca cidade aberta cujos governantes retiraram para as suas cidadelas enquanto mandam os seus povos penitenciar-se perante as turbas a que os deixam entregues: tapem essa estátua. Não digam a palavra descobrimentos. Não vejam esse filme. Não leiam esse livro… paguem é os impostos, sobretudo paguem os impostos. Os diretos e os indiretos. Mais as taxas que eram só para os ricos e acabam sempre a ser pagas pelos pobres.

Há uns meses estes governantes davam estatuto de especialista em economia, clima e relações internacionais a uma miúda que da vida só conhecia os microfones dos jornalistas e a mesada dos pais. Depois vieram os avisos dos cientistas de que uma epidemia estava para chegar e os mesmos governantes que anteriormente se fiaram numa adolescente para nos dizer como nos devíamos governar e salvar o mundo do apocalipse, disseram que não ia ser nada. Depois disseram que ia ser o fim do mundo se não fizéssemos o que eles diziam, sendo que num dia diziam uma coisa e no outro o seu contrário. Agora fazem inventários de estátuas a esconder.

Enganamos, enganamo-nos e enganaram-nos.

Prometeram-nos liberdade e acabamos mais vigiados que nunca.
Prometeram-nos igualdade e acabamos divididos em castas.
Prometeram-nos paz e acabamos a viver em guerra conosco mesmos.

Acabamos cercados.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 14-6-2020, 8h27

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