Prometeram-nos liberdade e acabamos mais
vigiados que nunca. Prometeram-nos igualdade e acabamos divididos em castas.
Prometeram-nos paz e acabamos a viver em guerra conosco mesmos. O cerco
fechou-se
Helena Matos
O que vai ser? O
triunfo da patranhologia da libertação
Como se chamava o rapaz morto há poucos dias pela polícia angolana num mercado de peixe em Benguela? Tinha 14 anos. E o outro de 21 baleado em Rocha
Pinto porque não usava máscara, qual era o nome dele? Azar o deles não serem
afro americanos em tempos de administração Trump. E aquela mulher que foi espancada pelas forças de segurança na Guiné-Bissau porque não saiu da varanda? Ainda se a agressão pudesse ser
enquadrada numa perspectiva dos abusos do colonialismo heteropatriarcal branco!
Um agente de autoridade interpela um jovem no distrito de Kifangondo, em Luanda. Foto: Osvaldo Silva/AFP |
Quando a utopia da libertação
de África acabou numa sucessão de regimes grotescos, as periferias urbanas de
várias cidades europeias encheram-se de gente que vinha a fugir da miséria e
das guerras. Mas continuavam apenas a denunciar-se os crimes do colonialismo e
os falhanços do colonialismo. E das libertações que nunca o foram? Quando se
faz o balanço dessa tragédia? Os africanos arriscam a vida a fugir do seu
continente por quê?
O manto de silêncio que caiu
sobre as consequências dessas ditas libertações permitiu a proliferação dessa
patranhologia que é a redução da escravatura a um fenómeno de brancos
escravizando negros. E permitiu também que a escravatura sobrevivesse nas
geografias onde os brancos não podiam ser culpabilizados como é o caso da
Mauritânia.
Mas não só, os argumentários
vitimistas aí estão de novo como se não tivessem lastro. As consequências de
sempre: pobreza e exclusão para os que caem nas malhas dos libertadores.
Cátedras, presidências de fundações e centros de investigação para os
libertadores. Na Europa e nos EUA, claro. Os afrodescendentes estão a ser a
carne para canhão dos libertadores do século XXI tal como os africanos o foram
dos libertadores do século XX.
O que vai ser? Tudo
será aceite se for apresentado como um combate contra o mal.
O que faria a HBO caso tivesse
no seu catálogo um filme sobre dona Ana Joaquina, mulata de Luanda,
(1788-1859), rica negociante, proprietária de terras e barcos e uma das maiores
comerciantes de escravos do seu tempo?… Pergunto que livros, quadros, estátuas,
tapeçarias, filmes… escaparão ao crivo de se achar que o passado devia ser
igual ao presente? Discutir o racismo em “E tudo o vento levou” ou o escravagismo
do padre António Vieira é uma armadilha porque é aceitar participar num contrassenso:
o passado é isso mesmo, passado.
Não diziam que devíamos lutar
contra a censura? Não ficaram para trás os tempos do inominável lápis azul?
Ora, ora, tudo isso era nos tempos em que a censura era censura e não um
combate ao discurso do ódio. Agora a censura chama-se combate ao discurso do
ódio e não falta quem se disponha a ser censor – diz-se ativista – em nome
desse combate (há mais combates para outras censuras). Empresas, universidades,
artistas… correm pressurosos a querer praticá-la. Competem até para ver qual se
esforça mais. Qual leva o seu zelo mais longe: enquanto atulham o seu discurso
com referências ao que foi proibido no passado eles mesmos estão a proibir conferências e a justificar que se eliminem livros das
bibliotecas.
Enganaram-nos não foi?
Prometeram-nos um futuro diferente do passado e afinal tudo o que abominamos no
passado volta, mas sem vergonha do que é. A HBO justifica com o palavreado de
uma redação de escola primária o ter retirado do seu catálogo o “E tudo o
vento levou”: “é um filme de época que retrata preconceitos étnicos e
raciais que, infelizmente, eram comuns na sociedade americana. Representações
racistas que não eram corretas na altura e continuam hoje em dia. A HBO Max
acredita que manter o título sem uma explicação ou denúncia das mesmas seria
uma irresponsabilidade. Estas representações são contrárias aos valores da
WarnerMedia e, por esse motivo, quando a HBO Max voltar a incluir o filme no
seu catálogo será mediante uma explicação do seu contexto histórico e de
denúncia sobre as mesmas, bem como mostrar como foram originalmente criadas, já
que fazê-lo de outra forma seria assumir que estes preconceitos nunca
existiram.”
Estas turbas ululantes,
ignorantérrimas, a tresandarem a superioridade moral, não têm o direito de se
impor como tutores do que vemos, ouvimos e estudamos. Muito menos destruir e
impor a sua lei particular. Há quem se sinta ofendido? Percebo perfeitamente.
Acho insuportavelmente mau e boçal muito do que se vê e ouve por aí. Mas nada
me dá o direito de exigir a sua proibição.
O que vai ser? As castas privilegiadas do regime vão lutar para mostrar
qual delas manda mais.
Em Lisboa, um prédio ocupado passou midiaticamente em segundos a centro de apoio a carenciados. Por quê? Porque quem o ocupou está do lado certo do
poder dentro da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e das redações. Ou seja do
BE. Ninguém averiguou porque deixou, em 2016, a CML de apoiar naquela mesma zona de Arroios um centro de apoio aos sem-abrigo que era gerido pela Igreja. (Na época a CML declarou: “há uma metodologia de
trabalho do centro paroquial que não se coaduna com o programa municipal de
apoio aos sem-abrigo da Câmara Municipal de Lisboa e, aparentemente, não
resolúvel“.
Pelos vistos aquele
ajuntamento folclórico que agora ocupou o prédio já tem uma metodologia
conforme ao programa municipal!) Muito menos alguém teve curiosidade de
investigar como estavam a ser aplicadas pelos ocupas as inúmeras normas que regem todo e qualquer um que meta ombros à tarefa de montar um centro de apoio a pessoas sem abrigo fora do ativismo da extrema-esquerda: existia por acaso o processo individual “permanentemente atualizado”
de cada utilizador? Estava afixada em local visível a licença de funcionamento?
E as “condições, critérios e procedimentos de admissão”? Escusam de dizer que
isto não é assim tão importante pois é importantíssimo: se a gestão do dito
centro não fosse daquela tropa fandanga era o suficiente para se falar de
ilegalidades, situações de risco e choverem ameaças de multas.
Mas se isto é o que aconteceu
eis o que vai acontecer: vamos ter mais ocupações. Para já vão-se penalizar as
tentativas de desocupação: muito convenientemente os seguranças que fizeram a desocupação do edifício são apontados como podendo ter exercido funções que lhes estão vedadas. Na
próxima ocupação dificilmente haverá desocupação. Nos primeiros tempos dirão
que no prédio ocupado vai funcionar um centro antirracista; uma associação
cultural; um centro de apoio a vítimas… depois nem isso. O BE faz prova da sua
superioridade face à lei na Almirante Reis. A CGTP na Alameda. O PCP na Festa.
Entretanto a polícia recebe ordens para apreender manjericos de papel nas
varandas dos bairros populares. Para o próximo ano os manjericos podem ser
obrigatórios. Não interessa: a normalização do absurdo moldou-nos para aceitar
os abusos do poder.
O que vai ser?
Exigir segurança é um crime para quem vive fora da bolha das castas.
12 de junho.
Amadora. Homem agride e deixa inconsciente PSP que defendia mulher e bebé. Agressor entrou na habitação da ex-companheira pela
janela, onde estava também a filha de ambos, uma bebé com 20 dias.
Lisboa. Um comerciante foi brutalmente espancado por um cliente, a quem pediu que usasse máscara de proteção contra a Covid-19 para
entrar no estabelecimento de que é proprietário, no Campo Pequeno, em Lisboa.
Na cidadela, esse mundo onde a
casta põe a máscara para ir de bicicleta ou de carro de serviço aos espetáculos
que louvam o regime, logo dirão que estas notícias são populistas. Estes
episódios só lhes interessam caso em algum deles se detectem sinais de
violência policial. Ou mais grave ainda indícios de que as vítimas reagiram.
Os governos, como acontece com
o francês, mandam as polícias carregar sobre os manifestantes quando se sentem diretamente
ameaçados. Recordo que esse bem-amado por conta dos euros que hão de vir, ou
seja o presidente Macron, teve de ser retirado de um teatro no meio de uma exibição de força que noutro contexto e com outros
protagonistas teria motivado uma cadeia de notícias (estão a ver os títulos com
Trump?)
Mas a salvo na sua
bolha-cidadela tudo lhes parece excessivo para garantir a segurança a quem tem
de usar os transportes públicos, vive nos bairros das periferias ou tem um
pequeno comércio e não se pode permitir o luxo de pagar um segurança (em muitos
casos, em Portugal já se acumulam seguranças e agentes policiais nos
chamados gratificados). Falar sobre a nossa segurança é um direito que deixamos
que nos retirassem. Podia ter sido doutro modo, mas preferimos o engano à
verdade e o tacticismo à coragem.
O ocidente é hoje uma grotesca
cidade aberta cujos governantes retiraram para as suas cidadelas enquanto
mandam os seus povos penitenciar-se perante as turbas a que os deixam
entregues: tapem essa estátua. Não digam a palavra descobrimentos. Não vejam esse
filme. Não leiam esse livro… paguem é os impostos, sobretudo paguem os
impostos. Os diretos e os indiretos. Mais as taxas que eram só para os ricos e
acabam sempre a ser pagas pelos pobres.
Há uns meses estes governantes
davam estatuto de especialista em economia, clima e relações internacionais a
uma miúda que da vida só conhecia os microfones dos jornalistas e a mesada dos
pais. Depois vieram os avisos dos cientistas de que uma epidemia estava para
chegar e os mesmos governantes que anteriormente se fiaram numa adolescente
para nos dizer como nos devíamos governar e salvar o mundo do apocalipse,
disseram que não ia ser nada. Depois disseram que ia ser o fim do mundo se não
fizéssemos o que eles diziam, sendo que num dia diziam uma coisa e no outro o seu
contrário. Agora fazem inventários de estátuas a esconder.
Enganamos, enganamo-nos e
enganaram-nos.
Prometeram-nos liberdade e
acabamos mais vigiados que nunca.
Prometeram-nos igualdade e acabamos divididos em castas.
Prometeram-nos paz e acabamos a viver em guerra conosco mesmos.
Prometeram-nos igualdade e acabamos divididos em castas.
Prometeram-nos paz e acabamos a viver em guerra conosco mesmos.
Acabamos cercados.
Título e Texto: Helena Matos,
Observador,
14-6-2020, 8h27
Postagem em destaque!!
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