terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Uma explicação

Henrique Pereira dos Santos

Por causa de um relatório do Instituto Ricardo Jorge, que aliás refiro no que hoje publico no Observador, escrevi: "não confio na leitura que a Lusa faz do que quer que seja".

De forma muito simpática e, tanto quanto me pareceu, genuína, perguntaram-me: "o que o poderá levar a pensar isso".

É uma pergunta justa e legítima e gostava de começar por assinalar uma coisa: o que digo e escrevo sobre o jornalismo e a imprensa é uma generalização injusta para muitos jornalistas.

Essa é, aliás, uma das razões pelas quais procuro assinalar o nome do jornalista concreto que me serve de base a um comentário, mesmo que o comentário contenha estas generalizações que são injustas para alguns.

E é uma nova generalização o que vou fazer neste post, repetindo um dos temas centrais do que escrevo: a má qualidade do jornalismo.

Insisto imenso neste tema porque acho o jornalismo uma coisa demasiado importante para ser deixada aos jornalistas, contestando a sacrossanta autorregularão com que boa parte do jornalismo pretende disfarçar o que não passa de corporativismo e comportamento de rebanho.

Poderia estar a desfiar exemplos sem fim deste comportamento de rebanho, mas fico-me por alguns.

Um bom exemplo recente é o carácter hagiográfico da forma como a imprensa assinalou os 100 anos de Mário Soares, como se ele não fosse uma pessoa necessariamente contraditória, como são as pessoas que atingem a dimensão que ele atingiu. Mesmo nos aspectos em que mais gente está de acordo sobre Mário Soares, como o seu amor pela liberdade, é muito fácil encontrar circunstâncias que revelam desprezo pela liberdade de terceiros, como a facilidade com que prescindiu de defender a liberdade dos guineenses, angolanos ou moçambicanos, ou indiferença, como quando elogiava o grande democrata Hugo Chávez.

O parágrafo anterior não é uma crítica a Mário Soares, sublinho que mesmo havendo obscuridade em determinadas alturas, a luminosidade do que fez na defesa da liberdade dos portugueses é mais que suficiente para o considerar um homem grande, o parágrafo anterior é uma crítica à forma acrítica e grupal como a imprensa tratou os 100 anos de Mário Soares.

Mas poderia falar da guerra da Ucrânia, em que o viés da generalidade da imprensa até está alinhado com o meu, o que não me impede de recorrer ao ISW para ter informação, não porque o seu viés seja menor (que não é, nem pretende ser) mas porque esse viés não o impede de procurar objetividade na descrição do que se passa nessa guerra.

Se saltar para as guerras do Médio Oriente, embora haja mais diversidade, a esmagadora maioria do jornalismo em Portugal (e no caso da Lusa, a um ponto doentio) é absurdamente parcial e pouco objetiva, distorcendo a realidade (pelo que é dito, mas sobretudo pelo que é omitido).

Para fugir destes temas mais traiçoeiros, o que a imprensa escreve sobre fogos e eucaliptos é, maioritariamente, uma confusão excessiva entre opinião e informação.

Como chegámos aqui?

O que me parece ser a questão central é o férreo corporativismo do jornalismo, alimentado pelo facto de grande parte dos atuais jornalistas terem um percurso arrepiantemente próximo do que é o percurso dos jotinhas de todos os partidos: começam a ser jornalistas nos bancos da escola, passam para os jornais (e outros meios de comunicação), em bolhas sociais fechadas em que jornalistas falam com jornalistas, são amigos de jornalistas, casam entre jornalistas e podem viver uma vida inteira sem nenhum banho de realidade.

Um subdiretor de um grande jornal do regime promove um vigarista porque o que ele diz serve bem ao que o jornalista quer dizer, esquecendo todos os princípios de verificação de toda a informação?

Pois bem, a sua reputação não sofre com o assunto (ou seja, não era grande coisa, e continuou sem ser grande coisa), é promovido a mandachuva da LUSA e depois a mandachuva da RTP, com a classe a cortar na casaca em privado e a calar-se em público.

Nicolau Santos, RTP

Este exemplo de discussão entre um jornalista e um curioso que lê (eu próprio) sintetisa o meu desconforto com grande parte do jornalismo: de um lado, um jornalista que não estuda, não avalia, não faz crítica das fontes, argumenta com fontes anónimas que terão dito coisa que ninguém pode verificar, do outro um tipo qualquer que apresenta, de forma mais ou menos sistematizada, um conjunto de informação, identificando fontes e permitindo a verificação do que é dito.

O resultado?

Uns dias depois o jornalista, porque pode, faz um programa com uma série de convidados que escolhe, que dizem o mesmo que ele, para fazer prevalecer a sua tese, sustentada em coisa nenhuma.

E isto é o que vejo, de maneira geral, no jornalismo, razão pela qual prefiro consultar fontes primárias de informação, em vez de confiar no jornalismo.

O congresso dos EUA faz um relatório sobre a Covid que contraria as verdades adquiridas pela imprensa e o Observador ignora o relatório.

Eu faço um artigo em que faço notar isso mesmo, meio dia depois o jornal finalmente publica uma peça sobre esse tal relatório.

Analisando o relatório e citando o relatório?

Isso é muito complicado, para que ler a fonte primária (sim, 500 páginas é mesmo chato) se se pode citar a CNN?

E é por tudo isto que voltaria a escrever, sobre a Lusa, mas sobre quase todo o jornalismo actual que "não confio na leitura que a Lusa faz do que quer que seja", mesmo correndo o risco de estar a ser muito injusto para os jornalistas que fazem o seu trabalho bem feito, cumprindo as regras básicas da profissão, não usando fontes anónimas, recorrendo a fontes primárias de informação, pedindo ajuda para compreender o que leem em assuntos mais complexos, etc..

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 9-12-2024

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