quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Quando o entrevistado não tem rigor e o jornalista não tem critério

Porta aberta para a desinformação

Né Ladeiras

A entrevista do Expresso, conduzida por Luís M. F. Faria, a Avi Shlaim, é um retrato doloroso de como uma conversa sobre Israel pode transformar-se numa repetição de certezas sem qualquer confronto. É evidente a falta de preparação do jornalista, que escuta afirmações altamente controversas e omissões gritantes como se estivesse diante de verdades consensuais. Em vez de questionar ou desafiar o que é dito, limita-se a acolher um discurso político disfarçado de história. E é justamente nessa ausência de perguntas que tudo se torna possível.

O mito dourado do mundo árabe pré 1948

Shlaim descreve o mundo árabe antes de 1948 como um lugar de convivência harmoniosa, sem antissemitismo e sem conflitos estruturais. Esta imagem sentimental ignora séculos de estatuto de dhimmi, que colocava judeus e cristãos como súbditos de segunda classe, sujeitos a impostos específicos e restrições civis. Ignora episódios documentados de violência, como o pogrom da Farhud, em Bagdade, que em 1941 marcou o colapso da segurança judaica no Iraque. Ignora o massacre de Aden, em 1947, e vários motins antijudaicos que ocorreram em toda a região. Ignora leis anti-judaicas aprovadas em países árabes antes mesmo da criação de Israel. Nada disto é referido por Shlaim e nada disto é perguntado por Luís M. Faria, que aceita sem escrutínio uma visão romântica construída à custa de omissões sérias.

A falsa história da fuga dos judeus do Iraque

Shlaim sugere que a saída dos judeus do Iraque foi provocada por acções sionistas destinadas a criar pânico, ignorando que esta acusação já foi desmontada por historiadores judeus-iraquianos (Elie Kedourie, Shmuel Moreh), e ocidentais (Martin Gilbert, Bernard Lewis, Norman Stillman), por documentação oficial. A verdade mostra perseguição crescente antes das bombas, legislação discriminatória, revogação de cidadania, confisco de bens e ameaças constantes desde a década de trinta. A comunidade judaica iraquiana não fugiu por propaganda, mas por violência real e sistemática. O jornalista não recorda este contexto, não questiona a versão de Shlaim e deixa um ponto decisivo da história transformado num mito conveniente.

O exílio silencioso de oitocentos e cinquenta mil judeus

A lacuna fabricada não termina aqui. Entre as décadas de quarenta e setenta, mais de oitocentos e cinquenta mil judeus foram expulsos, ou forçados a fugir, de países árabes como Iraque, Egipto, Líbia, Síria, Iémen, Tunísia, Argélia e Marrocos. Estas comunidades existiam na região muito antes do Islão e perderam tudo durante ondas sucessivas de violência, perseguição e legislação repressiva. Israel recebeu a maioria como cidadãos. Hoje, sensivelmente metade dos judeus israelitas tem origem árabe ou mista. Este facto destrói, por completo, a teoria repetida por Shlaim de que Israel é um projecto colonial europeu implantado no Médio Oriente. O jornalista não menciona nem questiona este dado elementar.

O que Shlaim esconde sobre o antissemitismo árabe

Shlaim apresenta o sionismo como um movimento exclusivamente europeu, retirando aos judeus do Médio Oriente qualquer protagonismo histórico. Não menciona o papel do mufti Haj Amin al-Husseini, que incitou massacres antijudaicos na Palestina nas décadas de vinte e trinta e colaborou com Hitler na propaganda anti-judaica. Esta parte da história desaparece completamente do discurso de Shlaim, porque destrói a ideia confortável de que a hostilidade árabe aos judeus nasceu apenas com o Estado de Israel. O jornalista também ignora intencionalmente ou não este capítulo fundamental.

O abuso calculado das palavras apartheid e supremacia

Quando Shlaim acusa Israel de ser um Estado de supremacia judaica e um regime de apartheid, o jornalista não o confronta com factos que contradizem essas expressões carregadas de intenção política. Cidadãos árabes de Israel votam, elegem partidos, ocupam cargos autárquicos e integram o parlamento. Há juízes árabes no Supremo Tribunal. Existem desigualdades e falhas graves que têm de ser corrigidas, mas não existe segregação racial legislada nem um sistema de proibições como o do apartheid sul-africano. A acusação serve uma estratégia emocional e ideológica, e o jornalista não pede qualquer clarificação.

A mentira cómoda sobre quem rejeitou a paz

Shlaim afirma que Israel nunca quis a paz, e o jornalista deixa ficar esta frase sem explicação, sem contexto e sem factos. Não se recorda que a liderança judaica aceitou o Plano de Partilha da ONU em 1947, enquanto a liderança árabe o rejeitou. Não é mencionada a decisão árabe, tomada em Cartum, de não haver paz, nem negociações, nem reconhecimento de Israel. Não se fala dos acordos de paz com Egipto e Jordânia, que exigiram concessões territoriais enormes. Não se menciona que os líderes palestinianos receberam propostas completas de criação de um Estado em 2000 e em 2008, e não aceitaram nenhuma. A ausência de contexto produz uma visão profundamente enganadora.

Terrorismo ignorado, negociações destruídas

Nada é dito sobre o papel destrutivo do terrorismo no fracasso das negociações. Após a proposta de Camp David, em 2000, a resposta foi uma onda de atentados suicidas que matou centenas de civis israelitas. O Hamas declara abertamente que o seu objetivo é destruir Israel e rejeita qualquer solução pacífica. A divisão política entre Gaza e Cisjordânia torna um acordo praticamente impossível. A Autoridade Palestiniana está mergulhada em corrupção e repressão interna. Shlaim omite tudo isto. O jornalista também.

Memórias pessoais não são História

Shlaim transforma memórias familiares em teoria universal, quando conta que a sua mãe via o sionismo como um projeto asquenaze e, a partir daí, deriva uma explicação sociológica para todo o conflito. Esta extrapolação emocional passa como se fosse uma reflexão académica, porque Luís M. Faria não questiona a validade de tirar conclusões históricas a partir de anedotas domésticas.

Balfour e o apagamento das partes inconvenientes

A entrevista permite que Shlaim apresente a Declaração Balfour como um documento de roubo colonial, ignorando que a própria declaração afirma que os direitos civis e religiosos da população não judaica devem ser protegidos. Não se menciona que a Grã-Bretanha limitou drasticamente a imigração judaica com o Livro Branco de 1939, mesmo com judeus a fugir do genocídio nazi. Não se menciona a incoerência britânica, que prejudicou ambos os povos em momentos diferentes. O jornalista não pede rigor, nem equilíbrio, nem contexto.

Os palestinianos como instrumento dos regimes árabes

A entrevista também ignora o facto de que vários Estados árabes recusaram conceder cidadania a refugiados palestinianos, mantendo famílias inteiras em campos durante gerações, como ferramenta política contra Israel. Esta dimensão essencial do problema palestiniano desaparece completamente do retrato de Shlaim e, mais uma vez, não é trazida ao debate pelo jornalista.

A linguagem como arma e o silêncio de Luís M. F. Faria

Shlaim recorre a palavras emocionalmente carregadas como colonização, opressão, supremacia ou apartheid, sem definição nem exemplos concretos. Estas palavras funcionam como gatilhos, e não como categorias de análise. Qualquer jornalista competente exigiria precisão. Nesta entrevista, não há essa exigência. Há silêncio.

Uma versão amputada da história

O resultado é uma peça onde a história se resume a um enredo simplificado, em que Israel é a origem de todos os males do Médio Oriente e o mundo árabe surge como espaço de harmonia, apesar de perseguições, pogroms, expulsões e manipulações políticas amplamente documentadas. Não é apenas uma entrevista fraca. É uma caricatura.

O jornalismo que não questiona

Exige-se que um jornalista faça perguntas, e não apenas que segure um gravador. A entrevista de Luís M. Faria falha tudo isto e demonstra como a falta de rigor permite transformar o Médio Oriente num conto de moralidade pré-fabricado.

Quando os leitores ficam sem a verdade

A história precisa de contexto. O jornalismo precisa de coragem. Os leitores precisam de perguntas. Quando tudo isto falha, o que sobra é exatamente o que esta entrevista oferece. Pouca luz, muita sombra e um entrevistado que, graças à passividade de Luis M. Faria, nunca é confrontado com aquilo que deliberadamente escolhe omitir.

Título, Imagem e Texto: Né Ladeiras, Facebook, 3-12-2025, 5h32 

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