Por que Yoani Sánchez, mulher
de aparência frágil, fala doce e textos nada inflamados, provoca a fúria de
alguns dinossauros da ideologia mundo afora, inclusive no Brasil? A resposta
não é simples. Ainda que as esquerdas contemporâneas tenham mudado a sua pauta,
e já não se encontrem mais comunistas de verdade nem em Pequim (restaram alguns
apenas nas universidades brasileiras), é certo que elas conservam o gene
totalitário e o ódio à democracia e à pluralidade. Herdaram do passado uma
concepção de sociedade que as coloca como a vanguarda da história.
Essa vanguarda seria a
caudatária legítima de todas as lutas em favor do progresso, da igualdade e da
justiça e, por isso, estaria habilitada a conduzir a humanidade para o futuro.
Elas se consideram dotadas desse exclusivismo moral — e, em nome dele, tudo
lhes seria permitido. Os que não aderem à sua pauta, pouco importa o conteúdo,
seriam forças da reação, agentes do atraso, sabotadores do progresso. A
história é rica em exemplos. A depender das necessidades, o comunismo
internacional ora se alinhou com o nazi-fascismo “contra o imperialismo”, ora
com o imperialismo “contra o nazi-fascismo”. Seus comandados defenderam com
igual entusiasmo uma coisa e outra e, em ambas, vislumbraram o caminho para a
redenção do homem. Afinal, os donos da história sempre sabem o que é melhor
para a humanidade.
Esses grandes embates ficaram
no passado. Desmoronou também a ambição de se criar um modelo econômico
alternativo ao capitalismo. Setenta anos de história bastaram para evidenciar a
impossibilidade, restando, a exemplo de Cuba, algumas experiências que vivem de
esmagar as liberdades individuais e que se impõem pela violência. O capitalismo
fatalmente chegará à ilha hoje tiranizada pelos irmãos Raúll e Fidel Castro não
porque a história tenha acabado, e esse modelo de sociedade vencido. O
capitalismo chegará justamente porque a história não acabou, e o estado
comunista fracassou no seu intento de refundar o homem, a economia, a ciência,
a natureza e até a metafísica. Não custa lembrar que as esquerdas é que eram
partidárias do “fim da história”, não os liberais.
O comunismo fracassou.
Curiosamente, aquele “império” ruiu mais com suspiros do que com estrondo, tais
eram as suas fragilidades. Não foi o pouco de abertura econômica proporcionada
pela era Gorbachev que liquidou o modelo, mas o pouco de liberdade que ele
resolveu inocular no sistema. O totalitarismo é uma doença anaeróbia do
espírito. Não convive com o oxigênio da liberdade e do contraditório. Aquilo
tudo foi abaixo. A existência de Cuba e da Coreia do Norte é a prova mais
evidente de que o comunismo, como a humanidade o conheceu um dia, acabou. Mas
as esquerdas sobreviveram com a sua mesma concepção de história.
A despeito de todos os
desastres humanitários que já provocaram, continuam a reivindicar o monopólio
do humanismo e da verdade e a vender a fantasia de que são as únicas forças
moralmente habilitadas a nos conduzir para o futuro. Essa é a razão pela qual a
noção de “crise” — entendida como um momento de transformação — é a que mais
estimulou, ao longo do tempo, a imaginação dos historiadores e ensaístas de
esquerda, a começar do pai original, Karl Marx. Eles julgam saber para onde
conduzir a humanidade, ainda que esta, eventualmente, não queira…
Yoani provoca a fúria do
governo cubano e dos esquerdistas que se manifestam sem restrições nas
democracias (justamente porque o comunismo perdeu…) não porque defenda a
economia de mercado — todo esquerdista sabe, hoje em dia, que não há
alternativa; não porque esteja colocando em dúvida supostas “conquistas” da
revolução — ela é até bastante cordata a respeito. Os furiosos protestam porque
Yoani é a evidência de que o exercício da liberdade individual desconstrói a
fantasia totalitária, pouco importa em que modelo econômico ela esteja
ancorada. E isso vale também para o Brasil.
Vivemos, a despeito dos
totalitários em voga, num regime de plenas liberdades democráticas. É uma
conquista da população brasileira, não desta ou daquela força política em
particular. Não existe mais em nosso país um embate relevante entre os que
defendem e os que atacam a economia de mercado. O mercado venceu porque é a
escolha mais eficiente, mais racional e mais adequada às habilidades e às
aspirações humanas. Mas permanece, sim, um confronto inconciliável entre os que
acreditam nas liberdades individuais e os que entendem que estas devam se
subordinar aos anseios daqueles que se apresentam ainda hoje como “a
vanguarda”.
Aqueles patetas fantasiados de
Che Guevara que hostilizaram Yoani, a absurda participação de um funcionário
graduado do governo na conspirata armada pela embaixada cubana, as grosserias
que contra ela desferiram parlamentares de esquerda, tudo isso é a evidência
não de amor pelo comunismo, mas do ódio à liberdade. Com a sua simplicidade,
com a sua verve mais tímida do que encantatória, com algumas formulações muitas
vezes óbvias sobre o que é ser livre, Yoani não trouxe à luz apenas as
violências do regime político cubano; ela conseguiu denunciar também as
tentações totalitárias que ainda estão muito vivas no Brasil. Não é que essa
gente que saiu urrando contra ela ainda acredite no comunismo. Mas é certo que
essa gente ainda acredita na ditadura. Em Cuba ou aqui.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 24-02-2013
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