quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Macroscópio do dia 1 de outubro

José Manuel Fernandes
Boa noite!
Deixei-vos aqui ontem algumas pistas de reflexão sobre o complicado mundo em que vivemos, um mundo recheado de incertezas e perplexidades. Vou acrescentar hoje mais alguns textos que ajudam a pensar essas complexidades. Alguns são grandes peças jornalísticas, outros são artigos de opinião que nos desafiam e interrogam.

Começo por duas sugestões relacionadas com a ascensão do Estado Islâmico em terras da Síria e do Iraque. Uma das perplexidades que nos tem assaltado desde que aquele grupo de jihadistas começou a somar vitórias militares é a sua capacidade de atrair jovens nascidas e criados na Europa, em especial a sua capacidade para levar raparigas a abandonar tudo para viajarem para a remota cidade síria de Raqqa. Uma equipa de jornalistas do britânico The Guardian tentou seguir o rasto de muitas dessas raparigas e dessa investigação resultou “School girljihadis: the female Islamists leaving home to join Isis fighters”. É uma longa e perturbante reportagem que cruza várias cidades europeias e nos conta a história de meninas de 14 e 15 anos que fugiram de casa para irem casar com guerreiros do ISIS. Histórias como as de Samra Kesinovic, de 16 anos, e da sua amiga Sabina Selimovic, de 15 (na foto que encima esta newsletter), duas austríacas de origem bósnia que foram lutar para a Síria deixando apenas uma nota onde pediam às suas famílias para não irem à sua procura: “Vamos servir Alá – e morrer por ele”. Ou como Asqa Mahmood, de 20 anos, que trocou Glasgow pela Síria, sempre muito activa nas redes sociais. Eis uma das suas mensagens, muioto reveladora:

“Most sisters I have come across have been in university studying courses with many promising paths, with big, happy families and friends, and everything in the Dunyah [material world] to persuade one to stay behind and enjoy the luxury. If we had stayed behind, we could have been blessed with it all from a relaxing and comfortable life and lots of money. Wallahi [I swear] that’s not what we want.”

A rápida ascensão do Estado Islâmico está também a preocupar os países vizinhos, mesmo aqueles que são governados por partidos de inspiração religiosa, como a Turquia. A Spiegel foi até lá e o resultado mostra o nível de inquietação do governo de Ankara - The Caliphate Next Door: Turkey Faces Up to its Islamic State Problem. Extrato:

Assad's fall would immediately increase Turkey's influence as a regional power, one possible explanation for why Ankara didn't look too closely at who exactly it was supporting in Syria. Erdogan and Davutoglu, says Behlül Özkan from the Marmara University in Istanbul, "harbor pan-Islamic imperial fantasies." But by the end of 2013, Turkey's laissez-faireapproach had become unviable. Thousands of jihadists from all over the world were flying into Antakya and Gaziantep and crossing unhindered into Syria even as the Syrian rebel groups that Ankara supported complained about the terror being perpetrated by the Islamic State. 


Mudo agora de assunto e sigo para outro foco de preocupações: o surto de ébola. No dia em que o primeiro caso foi diagnosticado nos Estados Unidos, sugiro uma grande reportagem já com algumas semanas da Vanity Fair: Hellin the Hot Zone. Um repórter da revista viajou até Meliandou, uma aldeia remota da Guiné-Conacri, onde foi à procura do “doente zero” para tentar perceber como é que a epidemia depois se espalhou. É um texto apaixonante, onde se relatam as difíceis condições de vida naquele canto de África, um texto que começa e acaba em Meliandou, “where the epidemic began, village elders say they’ve lost 40 people to the disease. Hunters have stopped hunting. The village has been isolated and ostracized. Moto-taxis are afraid to enter and neighboring villages refuse to trade. These days, the people of Meliandou are worried less about Ebola. Now they worry more about hunger.”

Regresso à Europa para sugerir três leituras muito diferentes. No Financial Times é obrigatório ler o texto de opinião de Hans-Werner Sinn, o poderoso e influente presidente do IFO, o Instituto para Investigação Económica de Berlim: Merkel has a duty to stop Draghi’s illegal fiscal meddling. Sinn opõe-se à política anti-deflacionária do Banco Central Europeu. É um texto bastante técnico, mas com uma mensagem clara: o BCE está a tomar medidas que ultrapassam os limites do seu mandato. Sendo assim, é preciso agir: “Germany’s constitutional court has expressly prohibited the German government from sitting back while the ECB oversteps its mandate. If politicians do nothing, any German citizen can petition the court and force them to act.”

É também muito interessante a entrevista que a Spectator fez ao antigo presidente da República Checa, Vaclav Klaus. Se o pretexto é a convenção dos consefrvadores britânicos, que esteve reunida por estes dias, a parte mais suculenta das respostas surge quando se pronuncia sobre o rumo que as coisas estão a seguir na Europa, fazendo da forma desabrida que sempre o caracterizou. Reparem nesta passagem:

If you ask me whether I think liberty is under huge attack in Europe now, I would say yes. I feel repressed by not being allowed to express my views. I have permanent troubles with this. Suddenly I have discovered, for the first time in 20 years, having been invited to be a keynote speaker at a conference, that the organisers find out I have reservations about the EU, about same-sex marriages, about the Ukraine crisis, and they say, “We are very sorry, we have already found a different keynote speaker, thank you very much.” This is something I had experienced in the communist era but not in so-called free Europe. Only a very narrow range of opinions is now considered politically correct.’

Uma outra entrevista que vale a pena ler é a que o escritor Ken Follet deu ao espanhol ABC a propósito da publicação do último volume da sua trilogia sobre o século XX. Galês, classifica o nacionalismo como “um beco sem saída”. Homem de esquerda, deixa o jornalista desconcertado quando este tenta levá-lo a criticar os efeitos daquilo a que ele chama os efeitos da “guerra económica” dos últimos anos. Ele nem sequer deu por ela, notando como, desta vez, os efeitos políticos da recessão foram bastante controlados quando comparados com o que sucedeu, por exemplo, nos anos 30.

Vou agora regressar a um tema que já ontem aqui abordei: a publicação do mais recente livro de Francis Fukuyama, “Political Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalisation of Democracy”. Para vos sugerir mais dois textos. Um é do próprio Fukuyama, foi publicado na The American Interest e é uma espécie de apresentação da obra, sublinhando em particular aquilo que distingue a sua tese da Samuel Huntington, cujo trabalho seminal e muito influente, Political Order in Changing Societies, foi publicado há quase cinco décadas, em 1968. Os argumentos são demasiados densos para serem aqui resumidos, pelo que recomendo o original: Political Order and Political Decay.

Igualmente muito interessante, e densa, é a recensão da Literary Review, escrita por John Gray: Destination Denmark. Este filósofo e cientista político inglês, autor de vasta e controversa obra, é muito crítico de Fukuyama:
Slipping insensibly from arguments about the ethical standards by which governments are to be judged to speculative claims about the moving forces of modern history, Fukuyama blurs facts, values and theories into a dense neo-Hegelian fog.

Termino com uma nota suscitada pelo Dia Mundial da Música que hoje se celebrou. Uma das cinco canções que o melómano Manuel Falcão escolheu para o Observador foi Hallelujah, de Leonard Cohenuma excelente escolha que me leva à sugestão final: um pequeno ensaio publicado na Standpoint sobre Cohen, que em Setembro completou 80 anos. Chama-se The Moral Strength of Leonard Cohen e tem passagens como esta:
At 80, Leonard Cohen stands above his generation as a seer of lasting things, of values received and passed on. Other musicians have emerged richer, more famous. Some still twist and shout on stage, escorting their mob of semi-retired fans into a seventh age of twilight care. Cohen stands up there unchanged, addressing his audience with unfailing courtesy and curiosity, with a sense of continued discovery.

Boas leituras. E hoje, porque é o dia que é, boas músicas também. 
Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 1-10-2014

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