Helena Matos
O problema dos jornalistas não
é de modo algum o que criticam e investigam, mas sim o que omitem sobre
determinados líderes e o acriticismo com que brindam determinadas causas.
“Tantos são preguiçosos. É
verdade, preguiçosos”, disse este sábado Passos Coelho a propósito dos
jornalistas, nas jornadas parlamentares do PSD/CDS. Terá dito mais. Falou de
“inverdades como punhos” (um dos fenómenos mais estranhos do léxico político
português foi o desaparecimento da límpida palavra mentira e a sua substituição
pela retorcida inverdade.)
Falou também o primeiro-ministro, aqui já, ao que
parece, a propósito dos comentadores (quiçá dos comentadores filiados no PSD que
aspiram a outros voos no ano de 2015), do espírito “Maria vai com as outras” de
quem procura causar uma boa impressão. Mas não ficou por aqui. Foi mais longe
questionando: “Por que é que aqueles que todos os dias informam os portugueses e
informam mal não hão-de dar a mão à palmatória, não hão-de pedir desculpa e não
dão aos portugueses um direito a ter uma informação isenta e rigorosa?”
Dizem as notícias que esta
intervenção de Passos Coelho foi bastante aplaudida. Não admira: os
sociais-democratas estão convencidos de que em geral a comunicação social não
lhes é favorável. Pode dizer-se que isso em parte é verdade. Basta comparar as
notícias sobre este governo com o respeitinho mostrado em relação ao PS ou com
o doce fechar de olhos em relação ao PCP e ao BE para o poder dizer. Mas também
se deve acrescentar que esta circunstância aparentemente penalizadora foi usada
em proveito próprio e com grande sucesso por alguns sociais-democratas como
Cavaco Silva ou Rui Rio, cujos eleitorados absolutamente convictos da
parcialidade dos jornalistas em relação aos seus candidatos, se habituaram a
desvalorizar e a desconfiar das notícias. E ficar imune às notícias (ou quase)
durante uma campanha eleitoral é verdadeiramente estar em estado de graça.
A avaliar pelo teor da
intervenção de Passos e pelas palmas ouvidas na sala do parlamento onde
decorriam estas jornadas parlamentares do PSD/CDS podemos concluir que este
será um dos eixos da campanha eleitoral do PSD em 2015: nós fizemos mas os
jornalistas não mostraram. A que naturalmente se seguirá não dito mas
implícito: não mostraram porque querem favorecer António Costa.
Digamos que este é um
argumentário com algum fundamento, mas é apenas uma parte da verdade: a boa
imprensa, de que Costa inegavelmente gozou, torna-se frequentemente um presente
envenenado. E no caso concreto do actual líder dos socialistas pode trazer-lhe
mais problemas do que vantagens em 2015: habituado a declarar e não a debater,
tendo vivido mediaticamente na redoma reservada às segundas figuras dos
partidos e tendo sido geradas em torno de si expectativas redentoras para o
dilema presente dos socialistas – é o socialismo compatível com a realidade? –,
António Costa vai sofrer uma imensa pressão para explicar como governará de
forma diferente de Passos e como será diferente de Hollande (e também de
Sócrates, mas esse é um outro assunto que nada tem a ver com ideologia mas sim
com moral e poder).
Se Costa não for muito claro
nestas matérias – e o enredo em que se enfiou em torno da discussão sobre a
dívida não augura nada de bom –, arrisca-se a não se livrar dessa pressão antes
da campanha eleitoral. Ora há poucos momentos mais perigosos para um político
em campanha do que perder o estado de graça. Perdê-lo no poder como aconteceu a
Passos faz parte do jogo. Perdê-lo em campanha pode determinar um resultado.
Logo nem tudo o que parece é neste mundo das notícias dos e sobre os partidos e
os governos.
Quem também não se pode dizer
que sejam preguiçosos, mesmo que o pareçam, são os jornalistas. Haverá alguns
que o são, mas a maior parte trabalha cada vez mais recebendo cada vez menos.
Também não acho que tenham de pedir desculpas. Ou, como quaisquer outros
profissionais, só terão de o fazer quando por negligência ou má-fé fizerem mal
a alguém. E aí não são os políticos as principais vítimas. Ou quando o são isso
acontece geralmente porque os aparelhos partidários deixaram cair alguém que
lhes pode comprometer as ambições: lembram-se das notícias sobre o cansaço de
Campos e Cunha numa fase em que o então ministro das Finanças começava a ser um
obstáculo aos projectos megalómanos de Sócrates? E a hiper-atenção votada à
pasta da Economia quando esta era ocupada pelo independente Álvaro Santos
Pereira? E as notícias sobre a demissão de Nuno Crato sopradas por gente do PSD
ansiosa por substituir o actual ministro por alguém que de educação nada saiba,
mas que entregue o ministério à paz dos funcionários e dos sindicatos do
sector? Os jornalistas têm as costas largas!
O que temos como elemento
redutor e distorcivo de boa parte das notícias é uma outra coisa. Uma outra
coisa que faz com que o problema não esteja no que escrevem sobre Passos, mas
sim no que não escreveram sobre Sócrates. Ou que em algumas redacções tal só
tenha acontecido por absoluta impossibilidade de evitar o assunto. Tal como o
problema não é o que escrevem sobre os cortes nos salários, mas sim que em
quarenta anos de democracia se contem pelos dedos das mãos as reportagens
dignas desse nome sobre os sindicatos – de que vivem; quantos trabalhadores
representam ou como são realmente escolhidos os seus dirigentes – ou sobre o
mundo paralelo das empresas públicas.
O problema é acreditarem em
qualquer maquete e fazerem invariavelmente equivaler o gasto do dinheiro dos
contribuintes a políticas de crescimento. O problema é de cada vez que falam em
pobreza colocarem a questão como se a pobreza se resolvesse invariavelmente com
mais e mais subsídios. Em conclusão, o problema não é de modo algum o que
criticam e investigam, mas sim o que omitem sobre determinados líderes e o
acriticismo com que brindam determinadas causas. Aqui sim pode falar-se de um
favorecimento não necessariamente da área da esquerda, mas sim de quem lhe usa
o ideolecto.
Esse ideolecto que leva a que
se escreva (e apenas para citar exemplos da passada semana) “ILGA relembra:
Portugal não protege filhos de casais homossexuais” – desde quando é um dado
adquirido que aquilo que a ILGA defende protege essas crianças? Ou que se
conclua numa outra notícia: “Ferreira Leite arrasa Mota Soares e defende o
Estado Social”. Portanto dá-se como adquirido que Ferreira Leite defende o
Estado Social. Por quê? Porque defende a manutenção das prestações sociais mesmo
quando estas ultrapassem o valor obtido a trabalhar? É isso defender o Estado
Social? Esse ideolecto que leva ainda a que, na impossibilidade de ignorar um
facto, ele seja noticiado de forma absolutamente tonta como sucedeu com o
atentado que custou a vida a um bebé em Jerusalém – “Automóvel atropela
transeuntes em Jerusalém”. Como se os atropelamentos no mundo fossem tão raros,
mas tão raros, que o atropelamento de um bebé em Jerusalém ou noutra qualquer
cidade fosse notícia por si mesmo.
Esta é aquela parte da
História em que nas notícias não existem crimes mas sim desilusões – por exemplo,
a descolonização portuguesa. Em que as velhas utopias de engenharia social se
mantêm intactas mudando apenas de procedimento – agora são as barrigas de
aluguer, no passado foram os jardins-de-infância alternativos. Em que entre nós
e a felicidade está apenas o obstáculo de um papão – no passado o imperialismo
ianque, agora a senhora Merkel.
Alguma vez deixará de ser
assim? Não creio. Mas sempre nos resta o consolo de antecipadamente sabermos
que alguns dos melhores textos dos jornalistas do amanhã serão sobre esta
particular vontade de não ver dos jornalistas seus antepassados.
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