José António Saraiva
Podem ser feitas muitas
críticas a Passos Coelho, mas há um defeito que não se lhe pode apontar: o de
pôr os interesses do partido (ou os seus próprios) à frente dos interesses do
país.
Fiel à sua célebre frase “Que se
lixem as eleições”, fez o Orçamento que achou que devia ser feito e não o que
queriam que fizesse
Se Passos Coelho peca, nesse
aspecto, é pelo defeito contrário: por assumir culpas que não lhe cabem ou por
ser demasiado transparente.
Ainda recentemente, Cavaco
Silva lhe puxou as orelhas por ter dito que a resolução do BES poderia ter
encargos ‘indirectos’ para os contribuintes, por via da CGD.
Cavaco classificou esta
afirmação de “enorme disparate”, adiantando que isso seria o mesmo que dizer
que, quando uma família não paga um empréstimo à Caixa, também seriam os
contribuintes a arcar com o prejuízo.
Aqui, como noutros assuntos,
Passos Coelho revelou excesso de zelo.
Quando outros tentam esconder
alguns factos incómodos, ele assume-os, mesmo não lho cabendo fazer.
Passos tem sido assim desde o
início do mandato.
Todas as suas supostas gafes
resultaram de um excesso de transparência.
Quando disse que desejava ir
“além da troika” – frase que tantos amargos de boca lhe tem causado – todos
perceberam o que ele queria dizer: que o país tinha de fazer reformas para ter
futuro, e que devia fazê-las por iniciativa própria, estabelecendo objectivos
ambiciosos, e não apenas por imposição
dos credores.
Quando disse que o país tinha
de “empobrecer”, também toda a gente percebeu o que ele procurava dizer:
estando nós a gastar acima das nossas possibilidades, tínhamos de consumir
menos e de viver com menos – ora, chama-se a isso ‘empobrecer’.
Quando afirmou que quem cai no
desemprego não deve cruzar os braços, antes deve procurar todas as
alternativas, inclusive a emigração, disse apenas o óbvio. Mas as pessoas não
quiseram perceber.
Agora, depois de três anos de
austeridade, muitos esperavam que Passos Coelho aproveitasse o ano eleitoral
para piscar o olho aos contribuintes.
O seu parceiro de coligação, o
CDS, pressionou-o até mais não nesse
sentido – e o próprio PSD gostaria de um orçamento eleitoralista.
Muitos admitiriam que Passos
Coelho seguisse as pisadas de Sócrates em ano de eleições, quando este baixou o
IVA e aumentou o funcionalismo público.
Mas Passos resistiu mais uma
vez à tentação.
Fiel à sua célebre frase “Que
se lixem as eleições”, fez o Orçamento que achou que devia ser feito e não o
que queriam que fizesse.
É certo que subiu o défice de
2,5% para 2,7%, beneficiou alguns pensionistas e as famílias com filhos,
devolveu como prometido 20% dos cortes aos funcionários públicos – mas o que
deu de um lado tirou do outro, como na fiscalidade verde ou no fim das deduções
‘automáticas’ no IRS.
A oposição reconheceu, aliás,
o carácter não eleitoralista deste Orçamento, ao dizer que é “mais do mesmo”.
Muitas pessoas com quem falo, afectas ou desafectas
à maioria, dizem-se “surpreendidas” com Passos Coelho.
Não esperavam um
primeiro-ministro tão firme e determinado (alguns dizem “teimoso”), tão
convicto e imune às pressões, tão empenhado em fazer o que julga que é preciso
fazer e não aquilo que seria mais fácil.
Nas minhas aulas de política
defendo há muitos anos que esta é a forma correcta de fazer política.
E digo que ela compensa sempre
– mesmo que seja a prazo.
Os exemplos são inúmeros: toda
a gente ainda hoje se lembra de Margaret Thatcher, afastada do poder por criar
um imposto impopular, mas alguém sabe o nome do seu sucessor, que aplicou
políticas muito mais populares?
Ernâni Lopes é outro caso:
chamaram-lhe “o ministro que mete medo”, mas hoje é apontado como um exemplo a
seguir.
Pode dizer-se que Passos
Coelho prometeu muita coisa antes das eleições que depois não cumpriu.
É inteiramente verdade.
Mas não é menos verdade que,
quando as eleições se realizaram, já estava fechado o acordo com a troika e
havia um caderno de encargos para cumprir.
Ninguém ignorava, portanto, o
que era preciso fazer.
Alguns socialistas também
acusam Passos Coelho de ser o causador do resgate, ao chumbar o PEC 4; é a
célebre ‘narrativa’ de José Sócrates.
Não nos esqueçamos, porém, que
o PSD tinha deixado passar os PEC 1, 2 e 3; e se tivesse chumbado o primeiro
(que era o Orçamento do Estado) teria logo feito cair o Governo.
Na situação inversa, seria
isto, possivelmente, o que os socialistas fariam.
Não nos esqueçamos que António
Costa (e o próprio Sócrates) atacaram António José Seguro por não ter votado
contra o primeiro Orçamento do Governo de Passos Coelho.
O que é muitíssimo irónico: os
mesmos que queriam que Seguro chumbasse o primeiro OE do PSD criticam Passos
Coelho por ter chumbado o quarto PEC!
Na política, a coerência é uma palavra vã e o
cinismo é a regra.
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