sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Macroscópio – Discórdia para o jantar, com vinho alentejano e cerveja belga


José Manuel Fernandes
Foi o último Conselho Europeu de Durão Barroso como presidente da Comissão, e também o último de Van Rompuy como presidente do Conselho. Por isso houve vinho alentejano e cerveja belga para o jantar. Não houve foi muita concórdia entre os líderes.

O primeiro tema da cimeira era a política energética e climática e Portugal entrou a bater o pé: não subscreveria qualquer acordo se não fosse também aprovada uma política de interligações que permitisse à Península Ibérica deixar de ser uma ilha, quase isolada que ainda está das redes europeias de energia. O problema era a França, que sempre resistiu a aumentar o número de linhas que cruzam os Pirinéus. Madrugada alta Portugal pode cantar vitória: como se sintetizou aqui no Observador, Passos Coelho bateu o pé no Conselho Europeu e Portugal vai estar mais ligado à rede energética europeia. A mesma leitura foi feita pelo Financial Times, que contou como Portugal, mesmo sem contar com um apoio mais forte de Espanha, conseguiu os seus objectivos:

The emergence of Portugal as a major stumbling block took many by surprise. Going into the summit, Spain complained bitterly about France’s reticence to building new power lines over the Pyrenees to allow export of its surplus wind power. But Mariano Rajoy, Spanish prime minister, dropped out of the talks, leaving Portugal’s Pedro Passos Coelho to battle for the Iberians.
Ultimately, Portugal and Spain won their battle to ensure that 
Europe’s electrical grids should be better connected. The EU said that countries should be able to export 15 per cent of their generational capacity by 2030. This process would be closely monitored to ensure that France would open its border to transmission lines from Iberia.

O El Pais também relatou essa batalha nocturna, sublinhando as vantagens que o acordo pode ter para Espanha (supõe-se que para Portugal não serão muito diferentes): “La falta de conexiones a través de los Pirineos ha alimentado durante años una batalla política con París, que finalmente acepta que esa frontera vaya siendo más permeable. El aislamiento geográfico de España obliga a tener en marcha un dispositivo permanente muy costoso para evitar los apagones: “Ese sistema encarece un 5% la producción de energía”, según fuentes españolas.

Mais tarde, na habitual conferência de imprensa, Pedro Passos Coelho mostrar-se-ia “confiante de que o reforço das interligações de Portugal e Espanha com as redes elétricas europeias vai permitir aumentar as exportações nacionais de energia e atrair mais investimento”. Já no Expresso diário, José Gomes Ferreira (link para assinantes) trataria de explicar, à sua maneira, porque estava tão satisfeito o primeiro ministro. A ler.

No meio desta batalha poucas referências houve, na imprensa ibérica, às outras conclusões da cimeira em matéria de combate às alterações climáticas. Já na imprensa gaulesa, é esse o seu destaque. O Le Monde, por exemplo, titulava, numa peça que antecipava o acordo: “Passe d’armes décisive à Bruxelles sur le climat”. Mesmo assim não foi esse o seu tema do dia, pois em França toda a atenção se focou no choque entre Paris e a Comissão Europeia por causa do Orçamento de 2015.

Desta vez o socialista Renzi, italiano, não ajudou o socialista Hollande, francês. Tudo porque resolveu divulgar, no site do Ministério das Finanças de Roma, o texto da carta confidencial enviada pela Comissão Europeia onde esta pedia esclarecimentos sobre o Orçamento italiano - Itália publica carta "confidencial" de Bruxelas. Fez mesmo mais: quando foi repreendido, ameaçou divulgar os gastos de Bruxelas: "Seria divertido", acrescentou ameaçador.

O gesto deixou o Presidente francês embaraçado, mas não o fez seguir o exemplo: França não divulgaria cartas confidenciais, garantiu Hollande. Não divulgaria, mas divulgou, pois uma fuga de informação para o site Mediapart permitiu que todos ficassem a conhecer o conteúdo da missiva. Para um Hollande que a imprensa francesa já via na defensiva a Bruxelas - A Bruxelles, François Hollande sur la défensive, escrevia o Le Monde -, a divulgação da carta fez subir a temperatura política interna: alguns membros da oposição socialista de esquerda partiram logo ao ataque, escrevendo que « Le budget de la France relève de sa pleine souveraineté, et aucune mesure visant à réduire notre déficit structurel et qui aurait comme conséquence d'empêcher la nécessaire lutte contre la déflation ne peut nous être imposée. Garant de cette souveraineté budgétaire, le Parlement doit être partie prenante de la discussion qui se noue entre notre pays et la Commission européenne. »

Mas estes choques entre Bruxelas e duas capitais europeias mais a sul – Paris e Roma – parecem ser apenas brincadeiras de criança quando comparados com o choque entre a Comissão Europeia e Londres (e também Haia) por causa de uma inesperada factura de 2,1 mil milhões de euros. David Cameron está literalmente furioso: Cameron refuses to pay £1.7bn EU bill by deadline escrevia o Guardian; Cameron: Britain will not pay'appalling' £1.7bn bill for EU budget, titulava o Telegraph; UK anger at £1.7bn EU cash demand, notava a BBC.

Naturalmente que a factura surpresa tem a sua explicação – o Financial Times, que foi o primeiro a mostrar os números e a revelar um documento secreto da Comissão, encarregou-se também de dar essa explicação: Why is Brussels demanding EU budget back payments? –, mas isso não impede que este anúncio tenha vindo num momento especialmente sensível, com os eurocépticos em ascensão. Vejamos algumas das reacções:

· Hugh Muir, no Guardian: There are limits to the extent that an economy performing well because its citizens have worked hard and sacrificed should be expected to bail out those that have done neither, especially against that backdrop of anti-EU populism. Dig deeper into the rationale, and hackles rise further. Part of the recalculation of the performance of the UK economy incorporates money made through activities such as drug dealing and the sex trade. Thus we are penalised for the prevalence of activity prohibited by statute. One can see that thinking embraced on the Rochester doorsteps.

· James Kirkup, no Telegraph: Let's bre clear about something here. David Cameron does not want Britain to leave the European Union. If you read his Bloomberg speech promising a referendum, or review any of the things he has ever said about membership, it is clear that his preference is to remain in the union, albeit on different terms. Yet the Prime Minister is being buffeted, pushed relentlessly backwards towards a position of exit like a man trying to walk forwards into a howling gale.

·  Editorial, também no Telegraph, The scandal of Europe’s ever-expanding budget: Jean-Claude Juncker, the man Britain did not want as European Commission president, yesterday won the backing of the parliament in Strasbourg for his new team to run the EU for the next five years. His first action on being formally confirmed in his post was to tell David Cameron that there would be “no compromise” with the UK over the issue of the free movement of migrants within the single market. In this, he was seamlessly reaffirming the absolutist stance voiced earlier this week by his predecessor, José Manuel Barroso.

· Gavin Hewitt, na BBC: The political reaction was immediate. A senior Tory MEP said Britain was being penalised for having taken tough decisions with its economy. He thought it "outrageous". Another British politician said that it enabled David Cameron's opponents to ridicule claims that he had reined in and helped reduce the EU budget. A UKIP official said that Britain was being made to pay for the failures of the eurozone. And there are other pressures on budget payments. The European Parliament is demanding an increase of £5.4bn in next year's budget to help with projects to boost growth. All of this comes at a politically sensitive moment for David Cameron.

A União Europeia continua pois a dar sinais de desunião europeia. Esta cimeira não foi de crise nem tinha temas especialmente difíceis em cima da mesa, mas o ambiente de sexta-feira em muitas capitais europeias era pesado. Até porque alguns dos problemas – vai a França ceder no seu orçamento? vai o Reino Unido acabar por pagar a sua factura? – ficaram a pairar e a envenar o ar.
Mesmo assim, bom fim de semana. E boas leituras.
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, 24-10-2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-