Helena Matos
Nos jornais reina a hipocrisia
e quando a realidade não é compatível com a ideologia omite-se. Mete-se em
letras pequeninas. Arruma-se num cantinho. Faz-se quase de conta que afinal não
aconteceu nada
Estas primeiras páginas do
PÚBLICO e do Jornal de Notícias do dia 8 de Maio – um dia após as eleições
britânicas – são uma eloquente introdução ao jornalismo português. Onde estão
os resultados?
Em Portugal as redacções são
de esquerda, facto em si mesmo nem bom nem mau e que nada tem de original. O
problema, ou melhor dizendo o nosso problema, é que essa pertença traduz-se num
fenómeno do domínio do paranormal pois só o esoterismo consegue explicar que
tendo as redacções como propósito fazer notícias e dependendo o seu sucesso da
sua capacidade para as produzir acabem a esconder notícias relevantes
simplesmente porque elas põem em causa a sua narrativa prévia sobre o mundo.
Uma narrativa que garante que os partidos que cabem no espectro do progressismo
(seja isso o que for!) são invariavelmente os vencedores e que se tal não
acontece essa anormalidade só se explica por chapeladas, manipulação ou
obscurantismo dos eleitores. E assim, como a maior parte das nossas redacções
está convicta de que nenhum povo poderá votar num partido que além de se dizer
conservador defende a austeridade, a derrota de Cameron foi dada como certa.
Como tal não aconteceu, apesar de todas as certezas prévias dos enviados
especiais, só resta escondê-lo.
Pelo mundo fora há quem
proteste. Há quem dê conta da sua fúria como fez o Daily Mirror que naquela que
considero a melhor capa sobre o resultado destas eleições britânicas, clama
contra o que considera serem mais cinco amaldiçoados anos de governo de Cameron.
Pode ou não concordar-se com a
posição do Daily Mirror mas a capa é indiscutivelmente boa. Contudo em Portugal
nunca se faria uma capa destas. Nós somos todos oficialmente neutros. E
confundimos esses estados de sonsismo a que chamamos neutralidade com rigor e
independência. Ninguém toma posição a favor ou contra. (Curiosamente, uma das
raras vezes que um meio de comunicação tomou posição – a Rádio Renascença
aquando do referendo ao aborto – a sua cobertura jornalística foi não só
rigorosa como equilibrada.) Na prática a hipocrisia reina e quando a realidade não
é compatível com a ideologia omite-se. Mete-se em letras pequeninas. Arruma-se
num cantinho. Faz-se quase de conta que afinal não aconteceu nada.
Estas primeiras páginas do
Jornal de Notícias e do PÚBLICO tornam-se ainda mais eloquentes quando colocadas
ao lado daquelas que essas mesmas publicações dedicaram há bem poucos meses à
vitória do Syriza. Esse exercício de comparação foi feito pelo blogue Insurgente (que também englobou o Diário de
Notícias). O resultado fala por si.
A incapacidade de noticiar o que não cabe no enquadramento ideológico que os rege é uma característica que tem acompanhado os jornalistas portugueses na democracia. Livres do exame prévio são como se continuassem previamente a ter a certeza do que vai acontecer, do que devem escrever e dizer.
Para a História e memória
dessa sobranceria iluminada dos jornalistas logo no nascimento da democracia
ficou aquela reportagem da RTP aquando das eleições de 1975 em que, na fase da
apologia do voto em branco, para “todos os que não saibam em quem votar”, o
jornalista pergunta no Minho a uma mulher vestida de negro (símbolo para
qualquer jornalista do Portugal rural e atrasado que naturalmente não sabia em
quem votar) se ela sabia o “que é uma Assembleia Constituinte?” Ao que a mulher
respondeu prontamente com outra pergunta:“E o senhor sabe o que é um almude?”
A resposta definitiva chega na
pergunta seguinte: “Então porque vai votar?” pergunta com algum paternalismo o
jornalista. Sem perder mais tempo ela diz: “Pelo futuro de Portugal”. A
reportagem acabou ali.
O lápis azul da censura do
Estado Novo passou automaticamente a lápis mental rosa, às vezes vermelho na
democracia. Graças a ele os jornalistas portugueses deitaram fora a
oportunidade de fazer algumas daquelas que podiam ter sido as suas melhores
reportagens. Veja-se o caso dos retornados. Só depois de milhares e milhares de
pessoas terem fugido e dos seus caixotes começarem a atravancar os portos é que
vemos os primeiros retornados nos jornais. Mas daí até entrevistá-los foi um
passo que demorou frequentemente anos. E mesmo assim com os jornalistas a
fazerem enquadramentos vários sobre se eram retornados ressentidos ou não
ressentidos, se tinham sido exploradores ou explorados, colonialistas ou
vítimas do colonialismo. Mais, de Angola e Moçambique, entre Julho de 1974 e
meados de 1975, foram expulsos pelas autoridades militares portuguesas vários
jornalistas e líderes políticos acusados de “agressão ideológica” sem que tal
perturbasse em Lisboa a classe que até 25 de Abril de 1974 se mostrara tão
sensível às prepotências do poder.
Em boa verdade se tivesse de
escolher um lema para ilustrar o pensamento dominante em muitas redacções
optaria pelo slogan do desaparecido O Diário, jornal afecto ao PCP que se
anunciava como trazendo “a verdade a que temos direito”. De facto O Diário dava
aos seus leitores a verdade a que os comunistas achavam que eles tinham
direito. Como os leitores achavam aquela verdade muito especial ou por assim
dizer pequenina, O Diário foi perdendo leitores e não resistiu ao desmoronar do
mundo comunista: fechou abruptamente em Junho de 1990.
Ironia das ironias, como nesse
ano os feriados se colaram ao fim de semana o seu desaparecimento quase só se
percebeu uma semana depois e, perante a indiferença geral, os seus
trabalhadores foram despedidos ao abrigo das alterações à lei laboral levadas a
cabo pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva que o mesmo PCP acusava dos
crimes mais nefandos por causa de querer instituir no país o despedimento
colectivo.
O Diário fechou mas o conceito
de “verdade a que temos direito” esse manteve-se. E nem é na política que causa
maior dano este circunscrever das notícias à verdade a que os leitores têm
direito na óptica do pensamento avançado das redacções. Afinal há sempre um dia
em que os resultados eleitorais desmontam essas certezas. E ao contrário do que
se possa pensar nem sempre os líderes amados pelas redacções acabam
beneficiados por esse fervor. Veja-se o caso de António Costa que levado em
ombros pelas redacções como o líder que seria capaz de fazer o PS descolar nas
sondagens está agora com uma imagem de perdedor porque não consegue obter os
resultados que a boa imprensa associava automaticamente ao seu nome.
Mas como disse não é no
noticiário político que este vigorar da “verdade a que temos direito” tem mais
impacto. É sim nas notícias sobre o quotidiano e naqueles temas que se tornam
causas que essa “verdade a que temos direito” se torna na verdade indiscutível.
Assuntos como o aquecimento global, racismo, igualdade, insegurança tornam-se
no pretexto para a divulgação de um pensamento único em que nem se admite o
simples acto de discordar.
Podia dar centenas de exemplos
daquilo a que nos conduziu esta “verdade a que temos direito” levada ao
extremo. Mas vamos ficar por outra imagem. Esta reproduzida na página 10 do
Diário de Notícias de 6 de Outubro de 2013. Era acompanhada de uma pequena
legenda onde se lia “Homenagem aos Bravos da Rotunda. Sargentos. Os “Nove
Bravos da Rotunda” foram ontem homenageados numa iniciativa do jornal O
Sargento, na Praça do Marquês de Pombal, em Lisboa. Acampados na praça de 4
para 5 de outubro de 1910, decidiram ali continuar, numa “ação determinante”
para o êxito da revolução”.
Mas se repararmos bem na
imagem lá ao fundo desfilam vários manifestantes. O que quereriam? A legenda
desta foto não o diz. Nem eles são referidos em parte alguma dessa edição do
jornal. Nem dos outros jornais. Alguns blogues deram conta da sua estranheza
mas o assunto não mereceu qualquer destaque.
Aliás segundo um dos
participantes nessa manifestação mediaticamente invisível, José Ribeiro e
Castro, à excepção da Lusa e da Rádio Renascença não houve qualquer outra
referência àquela manifestação que vemos ao fundo nesta fotografia. Como foi
isto possível? Foi possível porque aquela manifestação não cabia no conceito de
verdade a que temos direito: aqueles manifestantes desfilavam contra o aborto e
a verdade a que temos direito só nos dá o direito a sermos informados sobre
manifestações a favor do aborto.
Esta fotografia é um símbolo
do jornalismo a que temos direito em Portugal: o repórter fotográfico saiu da
redacção do Diário de Notícias, que por sinal ficava mesmo ao lado, e foi fazer
a foto da homenagem aos revoltosos de 1910. De entre as fotos que fez
seleccionou-se a melhor. Na redacção alguém fez uma legenda a explicar o que
faziam aquelas vinte ou trinta pessoas ao pé da estátua do Marquês de Pombal.
Lá ao fundo passava uma manifestação. Reunia centenas de pessoas: 500 para a
Lusa, mais de mil para os organizadores. Mas sobre ela caía o manto da
invisibilidade da verdade a que temos direito.
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