Helena Matos
Combater o terrorismo
pressupõe o tempo longo dos pactos e a resiliência que nasce das convicções.
Ora nós vivemos o esboroamento do centro e trocámos as convicções pelas
indignações.
Não, não me apetece pela
quinquagésima vez o “somos todos” qualquer coisa, mais o facebook às riscas e a
Marianne a chorar. Já sabemos como vai ser não é? Lembram-se do Charlie Hebdo? Éramos todos tão livres,
não éramos? Pois éramos. E claro que não se pode ter medo, que a França é a
pátria da Liberdade, que mesmo ferida se vai levantar… Pois, mas em Julho deste
ano, meio ano após os atentados, o editor do Charlie Hebdo anunciou que aquele jornal não voltaria a publicar
desenhos satíricos de Maomé.
Ficámos um bocadinho menos
“charlies” não foi? E o bom Charlie
vai fazendo as suas caricaturas com os bispos do costume e até entreviu no
nosso governo de esquerda uma espécie de vitória sobre o nosso passado
colonial, não foi? Pois é, com um bocadinho de esforço quase que se pode dizer
que o Charlie continua na mesma.
Afinal, cada um acredita não no que quer mas sobretudo no que precisa. Há quem
goste de acreditar que continua novo apesar das rugas. Nós precisamos de
acreditar que continuamos livres.
Portanto, agora que a onda
está aí de novo, mais as flores, as velas e o Imagine (do Lennon), prefiro
fazer de conta que não engulo em seco diante das imagens daquela gente outra
vez pendurada numa janela para não morrer (lembram-se do 11 de Setembro?) e
daquele rapaz arrastando um corpo pelo meio da rua (uma rua de Paris!), para me
poupar à irritação daquele momento que não tarda em que caíremos no processo da
voz passiva que nos leva do óbvio – terroristas matam – ao grotesco das pessoas
que “acabaram por falecer” na sequência de actos alegadamente praticados por
terroristas.
Atos esses pressurosamente
transformados em respostas às políticas do Ocidente. Do Ocidente que quer o
petróleo. Do Ocidente que intervém. Do Ocidente que não intervém. Do Ocidente
que desenhou as fronteiras. Do Ocidente que fez as cruzadas… enfim uma espiral
retroativa em que as culpas nunca se expiam antes se exponenciam. (No nosso
portuguesíssimo caso junta-se a tudo isto, segundo Ana Gomes, a demora de
Cavaco Silva em indigitar António Costa. Mas não creio que, para já, a
comunidade internacional se sinta capacitada para ponderar essa tese.)
Há algo de grotesco nesta
forma de ver o mundo em que o outro – aquele que por uma qualquer razão nos
odeia ou ataca – é sempre o elemento neutro. Ele por ele nada faz. Os seus atos
são sempre o resultado de algo que nós, os nossos pais, os nossos avós e os
nossos antepassados fizeram, pelo menos até àquele polémico momento em que o
Neandertal se terá cruzado no planeta Terra com o Sapiens sapiens. Dir-se-á que
isto é pateta. Pois é. Mas o problema
das visões patetas é que o seu simplismo constitui-se como argumento eficaz na
justificação do injustificável: com os terroristas reduzidos à condição de
consequência dos nossos actos, a responsabilidade pelo terrorismo deixa de ser
dos terroristas pois é transferida para aqueles que o sofrem.
Não é por acaso que após os
atentados terroristas vivemos uma sensação de desconcerto, como se não fosse
justo nem lógico fazerem-nos aquilo. Na verdade para nós não é. Mas só para
nós. Do ponto de vista do terrorista não só tudo aquilo faz sentido como é
lógico: são actos tácticos de uma estratégia com objetivos próprios.
O terrorista não é uma
marionete puxada pelos fios dos atos presentes e passados dos outros. Muito
menos é alguém que buscando os mesmos objectivos de justiça dos não terroristas
apenas se enganou no caminho. O terrorista existe independentemente de nós.
Recordo como este exercício de
ver o terrorista como um resultado e não como um sujeito dotado de vontade
própria era particularmente penoso no caso dos atentados da ETA, em Espanha.
Primeiro a ETA matava por causa de Franco. Depois veio a Transição a ETA passou
a matar ainda mais (é exatamente durante a Transição que a ETA é mais
mortífera: 84 mortos em 1979 e 93 em 1980) mas tal, dizia-se, explicava-se pelo
combate à herança do franquismo presente no aparelho de Estado.
A Espanha tornou-se
democrática e a ETA continuava a matar militares, polícias, políticos e
empresários mas isso devia-se à ligação dos militares ao passado, dos polícias
à repressão, daqueles políticos à direita e dos empresários ao dinheiro.
A ETA continuava a matar.
Politicamente as balas entravam em nucas de direita e de esquerda. Mas havia
sempre uma culpa da sociedade espanhola para explicar mais uma bomba e mais uma
bala: eram os presos da ETA que não podiam estar todos juntos na mesma prisão;
era o tribunal que os condenava; era o artigo no jornal que os tinha ofendido;
o empresário que não pagava o imposto revolucionário… E quando não se percebia
que ligação haveria entre a vítima e os seus verdugos aventava-se que a vítima
podia ser um informador. Ou um narcotraficante, porque a ETA queria o País
Basco livre de drogas.
A par dos atentados, a ETA
desdobrava-se em várias organizações legalíssimas e ativíssimas no combate à
violência (das autoridades policiais, claro!) e de promoção dos direitos
humanos, (dos terroristas, obviamente!). Advogados, professores universitários
e jornalistas desdobravam-se, em Espanha e fora dela, em concentrações e
conferências de denúncia destes graves atentados à democracia. Ainda por aí
andam folhetos em que ilustres participantes portugueses se propunham mediar
entre a ETA e o intransigente Estado espanhol.
Até que a 10 de Julho de 1997
a ETA sequestrou Miguel Ángel Blanco, um vereador do PP em Ermua, e deu dois
dias ao Governo, então presidido por Aznar, para reagrupar os presos da
organização (independentista e não terrorista, segundo boa parte dos orgãos de
comunicação).
A 13 de Julho o cadáver de
Miguel Ángel Blanco era descoberto e nasceu o chamado Espírito de Ermua em que
para lá do PSOE e do PP terem estabelecido uma espécie de pacto de regime no
combate ao terrorismo a sociedade espanhola deixou de procurar as culpas das
vítimas em cada atentado.
Resultado: a ETA foi
derrotada. Mas só a ETA, porque o discurso do terrorismo, enquanto resposta
automática e não como estratégia de vontade própria, esse apenas mudou os
protagonistas do seu enquadramento.
Agora que os mortos se contam
na França de Hollande e não na América, para mais de Bush, resta-nos pelo menos
a esperança de que esta diferença geopolítica nos poupará ao destravamento
delirante das teorias da conspiração mas não será suficiente para nos livrar do
momento em que os atentados deixam de ser atentados para se tornarem
mediaticamente falando na resposta os que fizemos, fazemos ou pensamos vir a
fazer.
Quer isto dizer que não
acredito nas promessas de união para combater o terrorismo, promessas
reiteradas dramaticamente nestes dias? Na verdade não acredito que este seja o
momento Ermua da Europa. E não acredito por duas razões. Em primeiro lugar
porque combater o terrorismo islâmico implica não apenas, como no caso da ETA,
cooperação internacional – alguém ainda se lembra dos “santuários” da ETA em
França e de como eles acabaram? – mas coordenação internacional. Mais difícil
ainda de conseguir, e aqui chego à segunda razão, ou melhor dizendo ao segundo
conjunto de razões: combater o terrorismo islâmico pressupõe intervenções
militares e policiais que só se fazem com o tempo longo dos pactos e a
resiliência que nasce das convicções.
Ora nós vivemos o esboroamento
do centro e trocámos as convicções pelas indignações: às primeiras imagens de
uma operação mal sucedida e aos primeiros homens caídos, político europeu algum
fora do Reino Unido resiste às “manifestações pela paz”, até porque logo os
seus rivais usarão esse apelo como argumento eleitoral.
Politica e mediaticamente
falando (o que é quase a mesma coisa), a Europa e em parte os EUA alienaram o
incómodo estatuto da soberania pelo simpático (mas mortífero) conceito de
principado. Ou seja, os seus cidadãos sonham ser ricos, cultos e livres e
acreditam e sobretudo querem acreditar que podem manter a sua segurança e a sua
dignidade através da distribuição das suas sobras e estabelecendo alianças com
outros para que estes primeiro combatam por si e depois para que não a ataquem
(qualquer comparação com a Roma da decadência não é casual).
Por isso, se me pedirem um
símbolo destes dias eu não escolho a Torre Eiffel, nem as flores, nem as velas
mas sim um rosto que não vimos. O de Zouheir. Quem é Zouheir? O segurança que impediu a entrada de um dos terroristas no estádio onde decorria o França-Alemanha.
Esperar-se-ia que o rosto deste homem que evitou a catástrofe implícita ao
rebentamento das bombas dentro do estádio estivesse na capa dos jornais. Afinal
foi um dos heróis dessa sexta-feira. Pois foi e por isso tem medo. Medo que se
vinguem nele ou na sua família por ter feito o que devia fazer.
Zouheir somos todos nós.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
15-11-2015
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