Alexandre Homem Cristo
Com PS no governo, não foram apenas BE e
PCP que mudaram, mas também jornalistas que, cobrindo temas sociais, abdicaram
do dramatismo. Afinal, em Portugal deixou de haver fome, pobreza e emigração?
Já se sabe que, aos olhos do
debate político, tudo é relativo. Não é de agora, claro, mas nunca foi tão patente
como é hoje. Daí que, para a actual maioria parlamentar de apoio ao governo, a
ocorrência de incêndios, que era (entre 2011-2015) uma consequência da
incompetência governamental, seja agora um infortúnio causado pelas condições
meteorológicas. Daí que os atrasos de pagamentos nos hospitais, que eram (entre
2011-2015) actos neoliberais para a destruição do Serviço Nacional de Saúde,
sejam agora meros actos de gestão das contas públicas. Ou daí que a pioria dos
resultados dos exames nacionais e o aumento dos chumbos, que (entre 2011-2015)
simbolizavam a elitização do ensino e a exclusão dos mais desfavorecidos ao
acesso à educação, sejam agora resultados normais que dão pistas sobre o que há
para melhorar na escola pública. Enfim, a lista de exemplos é inesgotável.
A quem assiste aos ziguezagues
desta nova duplicidade de critérios sobeja o lamento de que tudo seria uma
divertida silly season caso a tontice fosse inocente e
passageira. Não é. O ponto de interesse está, portanto, na pergunta – o que
justifica esta duplicidade de critérios?
Uma parte da resposta surge
como óbvia: é evidente a alteração comportamental de PCP e BE, a quem muitos
têm (legitimamente) apontado o dedo – sobre os incêndios, por exemplo, leia-se o André Azevedo Alves. Mas a viragem destes partidos era expectável e tem
uma justificação acessível. Afinal, BE e PCP, que detêm o monopólio do
protesto, entraram na esfera do poder e tiveram de ajustar o seu tradicional
discurso populista ao compromisso de apoiar o governo PS. É certo que, nesse
processo e por comparação com o seu passado, expuseram a demagogia que
aplicaram durante anos em debates e inquéritos parlamentares. Mas, em termos
práticos, sem consequência: se a hipocrisia matasse em política, não teríamos
partidos.
A outra parte da resposta à
pergunta inicial é menos óbvia, embora mais interessante: não foram apenas BE e
PCP que mudaram a forma como encaram os factos políticos, mas também vários jornalistas
que, cobrindo temas sociais, abdicaram do dramatismo que marcou os últimos
anos. Não é necessário um grande esforço de memória para recordar como, entre
2013 e 2015, o debate público foi invadido de notícias sobre crianças com fome
nas escolas, sobre jovens que emigravam em fuga pela ausência de oportunidades
profissionais, sobre estudantes que desistiam do ensino superior por falta de
recursos, sobre idosos abandonados em condições de pobreza, sobre famílias
carenciadas para as quais o Estado não tinha resposta. Mas, desde as eleições
legislativas, essas notícias desapareceram. Afinal, em Portugal já não há fome,
pobreza, abandono dos estudos e emigração?
Há, infelizmente. Nenhum
governo corrige todas estas desgraças em nove meses – nem tal poderia ser
exigido a António Costa, como bem assinalou Henrique Monteiro, o único (que eu tenha
lido) a chamar à atenção para o tema. E, no entanto, se exemplos destas
desgraças continuam a existir na realidade, o ponto é que deixaram de existir
nos jornais desde que há uma maioria parlamentar de esquerda. Porquê? A
pergunta tem de suscitar reflexão. Porque, efectivamente, não existindo muitas
possibilidades de resposta, todas são preocupantes. Aconteça de forma
voluntária (por motivações políticas) ou de forma involuntária (por recurso
preguiçoso às fontes partidárias), esta súbita ausência implica que parte do
nosso jornalismo está demasiado apoiada nas fontes e agendas partidárias, em
vez de construir as suas próprias notícias e reportagens. E o problema vai muito além da questão da fiabilidade das notícias. Está, sobretudo, no
enfraquecimento do próprio jornalismo.
Ora, como se resolve um
problema desta natureza e no actual contexto dos jornais – com redacções cada
vez mais pequenas, com gente mal paga e demasiadas vezes inexperiente? Não sei.
Mas sei que tem de ser resolvido e que este é um debate urgente. É que dele
depende a qualidade do jornalismo e do debate público. E, consequentemente, da
nossa democracia.
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