Helena Matos
As cheias de 1967 tornaram-se a tragédia
que Salazar quis esconder. A imagem é poderosa mas falsa: a tragédia foi
mostrada. Nas cheias de 67 a censura foi claramente ultrapassada pelas
circunstâncias.
Os incêndios de 2017 foram
provavelmente a primeira tragédia em que os portugueses se viram livres de
Salazar. E esse vazio causou-nos uma espécie de desconcerto: como era possível
acontecer-nos algo de tão medonho, tão cruel e dramático sem termos ali à mão
aquela muleta do salazarismo, do Salazar que quis ou não quis, que fez ou não
fez, que conseguiu ou não conseguiu?
Na verdade, o estereótipo do
taxista que perante o trânsito caótico da capital invocava a falta de “um
Salazar” (que por sinal não tinha carta de condução) tem o seu reverso no
Salazar omnipresente das elites. Tragédias, deficiências do sistema de ensino e
de saúde, carências na habitação, costumes que se pretendem alterar tudo
remontava a uma vontade de Salazar que a democracia ainda não tivera tempo para
resolver.
Esta salarização das nossas
vidas levou a tragédias como a acontecida com a fuga dos portugueses de África,
subestimada e ignorada durante meses porque aqueles que a referiam caíam logo
no espectro do salazarismo. Levou também a ficções como a de uma I República
feminista versus um Estado Novo que excluiu as mulheres da vida política. E
produz anedotas como a do fado-futebol que de símbolos do salazarismo bafiento,
passaram a representar o Portugal moderno e progressista do século XXI.
A ditadura salazarista, como
todas as ditaduras, cultivou a desresponsabilização do povo: o governo dava, o
governo fazia, o governo sabia. Para nossa desgraça a democracia não só não
mudou este paradigma da desresponsabilização de cada um de nós como até lhe
acrescentou dois outros pilares: o primeiro passa pela identificação entre a
bondade dos governantes e aquilo que eles “dão” – Salazar não dava porque era
mau e atrasado, nós damos porque somos bons e modernos; o segundo é
personificado pela figura do morto sempre presente quando algo corre mal –
tragédias, erros, questões de época… tudo leva invariavelmente a Salazar. Ou
levava pois, como descobrimos perante os corpos carbonizados pelos incêndios
deste ano de 2017, já não faz qualquer sentido invocar Salazar para explicar os
nossos falhanços.
Esta constatação tornou-se
ainda mais perturbante porque ao mesmo tempo que se procede ao balanço dos
incêndios se assinalam cinquenta anos sobre as cheias de 1967.
Invariavelmente apresentadas
como um momento de falhanço do regime de então – e são-no de facto – as cheias
de 1967 tornaram-se uma espécie de corpo bizarro e incómodo neste ano de 2017
marcado por outra tragédia: afinal os desastres acontecem independentemente da
natureza dos regimes e, o que de modo algum esperávamos que viesse a
repetir-se, o falhanço das respostas e do socorro imediato aconteceram de novo.
Em 2017, tal como em 1967,
quando os portugueses mais precisavam do seu Estado descobriram-no ausente. O
que sobrava então: Salazar. Tinha de ser. Sem Salazar tudo era demasiado
parecido. E assim Salazar voltou aos títulos. Para todos os efeitos as cheias
de 1967 tornaram-se na tragédia que Salazar quis esconder. A imagem é poderosa,
mas falsa. Porque a tragédia foi mostrada. Na noite de 25 para 26 de novembro
de 1967 e nos dias seguintes, a censura foi claramente ultrapassada pelas
circunstâncias: a censura era um exame prévio a notícias enviadas atempadamente
para os censores. Perante a dimensão do acontecido nessa noite as redações
começaram a trabalhar a um ritmo frenético: os jornais fazem várias edições por
dia. As tiragens com novas informações sucedem-se a um ritmo tal que se chega a
escrever a hora a que aquela edição foi para a rua pois já outra se estava a
preparar. Para mais as cheias aconteceram na zona de Lisboa – onde estavam as redações
– e não em Trás-os-Montes ou em Moçambique. E as vítimas e a destruição
espalham-se por quilómetros. Quilómetros esses percorridos por jornalistas,
repórteres e estudantes. Há câmaras de filmar, fotografar e gravadores. Ouvidos
e olhos. Canetas e blocos de apontamentos. Que entram no que sobrou das casas,
nos quartéis de bombeiros, nas morgues oficiais e improvisadas, nas urgências
dos hospitais…
Certamente que o regime
gostaria que a tragédia fosse relatada doutro modo (ou quiçá de modo algum) mas
na verdade a censura não conseguiu impedir a torrente de informação quer sobre
as cheias de 1967, quer sobre as condições de vida nos bairros de barracas que
a água e a lama tinham destruído.
A forma quase mântrica como
agora se refere a intervenção de Salazar no controlo da informação sobre as
cheias de 1967 não trouxe um maior rigor na abordagem ao acontecido em novembro
de 1967, mas mostra à evidência como em 2017 gostaríamos de continuar a ter um
papão a quem pudéssemos responsabilizar por tudo o que aconteceu e acontece. E
assim como certamente teria agradado à censura da época continuam a ser
praticamente ignorados os roubos e pilhagens que tiveram lugar após as cheias
de 1967. Mais, a politicamente muito embaraçosa explosão do Forte do Carrascal
caiu no esquecimento: na noite de 25 para 26 de novembro a água entrou num dos
paióis desse forte próximo de Linda-a-Velha que explode na manhã de 26. Não
houve mortos, mas milhares de pessoas entraram em pânico em Oeiras, Paço de
Arcos, Algés… e abandonaram as suas casas. No dia seguinte voltarão a fugir
porque há indícios de uma nova explosão. Na época os jornais limitaram-se a
transcrever os comunicados militares e não deram mais que a versão oficial dos
acontecimentos. As fotos são escassas. Os relatos dos fugitivos quase nenhuns.
Meio século depois a explosão do Carrascal continua a ter muito para contar.
Igualmente mantém-se a
tendência para tratar os números como um reflexo da nossa vontade e não um
produto da realidade: os mortos das cheias de 1967 passaram de uns oficialmente
subestimados 462 (no próprio dia em que esse número é dado a conhecer
apareceram mais dois cadáveres) para um número redondo –700 – mais repetido do
que fundamentado.
A catástrofe de 2017 passou
finalmente a certidão de óbito a Salazar como argumento-desculpa para os
problemas do presente. Mas subitamente desprovidos desse Salazar até agora
omnipresente constatamos como as versões simplificadoras são más conselheiras.
Agarrada à caricatura do
Salazar que mandava a censura cortar, a sociedade portuguesa continua a
apreciar um jornalismo acomodado – “jornalismo de sarjeta” foi a expressão que
se tornou quase consensual em 2007 para classificar os jornais que então
revelavam alguns dos procedimentos de José Sócrates – e mostra-se perigosamente
desatenta em relação à proliferação de poderes censórios entre entidades que ao
contrário do poder político não são escrutinadas e não têm rosto como é, por
exemplo, o caso da Comissão Nacional De Proteção De Dados que ao mesmo tempo
que não levanta entraves à constituição da maior base de dados que Portugal já
conheceu – a informação que as finanças detêm sobre nós a partir do e-fatura –
intervém na divulgação de relatórios como o dos incêndios de Pedrógão. E a
lista dos maiores devedores da CGD que não podemos conhecer?
A isto junta-se o espírito do
tempo em que tudo é assédio, violação da privacidade e infracção do direito a
isto e àquilo que no limite leva a estas paradoxais perguntas: as fotografias
das cheias que a censura cortou em 1967, como aconteceu com as dos funerais das
crianças levadas pelos seus colegas de escola, seriam publicadas hoje? E as dos
mortos que então foram publicadas sê-lo-iam hoje?
Este Salazar que mantemos vivo
pode ser psicanaliticamente um caso interessante, mas politicamente é um
desastre. Os governantes que lhe sucederam, seja na ditadura ou na democracia,
demoraram a habituar-se a não o invocar na hora de assumir responsabilidades e
fazer opções difíceis.
Muita da nossa mediocridade,
da nossa incapacidade de fazer reformas e do nosso constante adiar das escolhas
difíceis passam precisamente por fazermos de conta que continua a tutelar o
país e a determinar as nossas vidas esse homem enterrado há 47 anos no
cemitério de Santa Comba Dão.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
26-11-2017
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