Rui Ramos
Este é um Estado que teve seis anos José
Sócrates à frente do governo, carregado de suspeitas de corrupção, mentira e
conspiração contra o Estado de direito – e nada fez para esclarecer as dúvidas
José Cutileiro, autor de um
dos melhores livros sobre Portugal, Ricos e Pobres no Alentejo,
contou ao Observador uma daquelas histórias que resumem um país. A certa altura, o seu alfaiate teve
de ir a Braga, como testemunha num julgamento. E eis como, de regresso,
sintetizou a sua prestação: “Bom, o juiz queria que dissesse a verdade, mas
eu…”
O perjúrio nos tribunais é um
clássico nacional. Em Visitas ao Poder, Maria Filomena Mónica
registou a impressão que lhe fez assistir em Lisboa, na década de 1990, a
audiências sucessivas em que a mentira era obviamente uma rotina a que todas as
testemunhas se entregavam, e que os juízes acolhiam com indiferença.
José Cutileiro comenta: “isto
é impensável a norte de Poitiers! (Em) todos os países que tiveram a Reforma,
que foram luteranos ou calvinistas, uma pessoa não se pode gabar de perjurar
num tribunal”. A explicação das imperfeições nacionais pelo catolicismo é um
lugar comum republicano. Mas com todo o respeito, parece-me que Cutileiro andou
mais perto da razão noutro ponto da entrevista: “há uma linha qualquer, que
passa provavelmente um pouco a norte de Bruxelas. Acima deste paralelo, as
pessoas normalmente acreditam no que lhes dizem e o poder que haja é
considerado legítimo. Abaixo dessa linha, as pessoas em princípio não acreditam
no que as outras dizem e o poder em princípio não é talvez tão legítimo como
isso”. Esta é a questão: porque é que em Portugal o poder não é legítimo, e
porque é que as pessoas não acreditam?
O problema não foi o
catolicismo. Foram antes aqueles que, julgando que era esse o problema,
começaram, no século XIX, por fazer tábua rasa de todas as instituições e
tradições, deixando para trás uma população rural e analfabeta que se habituou
a olhá-los com desconfiança. Sob vários regimes, desde então, Portugal teve
formas de Estado identificadas com pequenas claques políticas sem legitimidade
reconhecida e sustentadas apenas pela força ou pela manipulação. As leis e as
instituições mudaram frequentemente, com apenas uma constante: as exceções para
os amigos. A esse respeito, vale a pena lembrar outra história, a da visita de
António Nobre ao consulado de Portugal em Paris, na década de 1890, salvo erro
para validar um passaporte (cito de memória). A certa altura, o próprio cônsul
se revolta com os emolumentos, e comenta: “este Estado é um ladrão”. E trata de
arranjar maneira de Nobre pagar menos. O cônsul era Eça de Queirós. Ajudou
António Nobre porque era um confrade das letras. Como se dizia sob a República,
“para os amigos, tudo; para os outros, a lei”. Porque não haviam “os outros” de
mentir ao Estado, de tentar escapar aos impostos, ou de fugir à “lei”, quando
sabiam que esta só valia para quem não tinha “padrinhos”?
A ilegitimidade do Estado foi
agravada por outras tendências. Por exemplo, o modo como a defesa do poder teve
sempre prioridade sobre o seu escrutínio e responsabilização. Ou ainda, a
maneira como os vários regimes, para se fazerem populares, não hesitaram em
suscitar expectativas inviáveis, sujeitando depois o país a choques sucessivos:
bancarrotas como as de 1891 ou 2011, inflações demolidoras como as dos anos 20
ou dos anos 70 e 80. Demasiadas promessas e esperanças acabaram em cortes e impostos.
Como é possível “acreditar no que nos dizem”? Acima da linha de Bruxelas, está
também, por exemplo, a Europa com as menores taxas de inflação dos últimos 50
anos (veja-se o livro de Vítor Bento, Euro Forte, Euro Fraco).
José Cutileiro tem razão: “esta
espécie de indiferença pela verdade e a mentira em relação ao Estado é uma
grande falha nacional”. Mas a mentira do Estado em relação aos cidadãos, a
indiferença do Estado pela verdade é a outra metade dessa “falha nacional”.
Este é um Estado que teve seis anos o afinal não-engenheiro José
Sócrates à frente do governo, ostensivamente carregado de suspeitas de corrupção, mentira e “atentado contra o Estado de direito” – e nada conseguiu fazer para esclarecer as dúvidas, num sentido
ou no outro. Como ter confiança? Não, não foi só a falta de Lutero e de Calvino
no século XVI.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
21-11-2017
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