A fúria com que os esquerdistas atacam e
destroem os alvos do cancelamento faz parte do método para fragilizá-los e
dissuadir qualquer um que cogite defendê-los
Bruno Garschagen
O método de cancelamento não é
nem uma cultura nem uma novidade para a esquerda mundo afora. Após a Revolução
Russa em 1917, os procedimentos podiam variar entre expurgo, esquecimento
forçado, assassinato de reputação, prisão, execução. É famosa a estratégia de apagar
das fotos aqueles que, considerados traidores, eram presos ou mortos. Lenin e
Stalin usaram e abusaram do expediente. Os cancelados (das fotos e deste mundo)
mais conhecidos foram Leon Trotsky, Nikolai Antipov, Sergei Kirov e Nikolai
Shvernik, Nikolai Yezhov.
Décadas se passaram, mas o
método continuou sendo usado em países que permanecem socialistas, como Cuba,
China, Coreia do Norte. Nas democracias ocidentais, porque (ainda) não têm
poder político para expurgar, prender, executar, os esquerdistas estão usando
cada vez mais o assassinato de reputação para forçar o cancelamento daqueles
que consideram os inimigos mais perigosos. E o fazem agora com endosso,
articulação internacional, apoio financeiro e decisão empresarial de gente com
muito dinheiro e em posição de liderança.
Não é novidade empresário ser
socialista. F. Engels existiu para comprovar essa excentricidade. Talvez o
elemento novo seja o fato de que, atualmente, muitos homens de negócios estejam
agindo voluntariamente para a propagação de ideias socialistas, para financiar
políticos e um projeto de engenharia social, e para cancelar todos os que se
colocam como obstáculos. Se antes a maioria dos empresários era forçada a
fazê-lo sob um regime totalitário, hoje o faz de bom grado.
O aprendizado
dos fundamentos da sociedade britânica por parte de crianças filhas de
imigrantes foi atacado
Em 1984, Ray Honeyford,
diretor de um colégio de ensino médio em Bradford, no norte da Inglaterra,
escreveu um artigo no qual descrevia os problemas enfrentados pelos professores
que tentavam ensinar inglês aos filhos de imigrantes asiáticos. Publicado na
revista Salisbury Review, editada na época pelo filósofo Roger
Scruton, o texto de Honeyford defendia o aprendizado do idioma, da história e
de princípios básicos que fundamentavam a sociedade inglesa como um dos
elementos de integração das crianças e de suas famílias na sociedade britânica.
O diretor também atacava
vigorosamente (e corretamente) a atitude dos pais imigrantes em relação aos
filhos, que eram proibidos de participar de atividades escolares e enviados
para passar meses ou anos no país de origem para não serem “contaminados” pela
cultura britânica. O artigo também criticava a leniência da política
multiculturalista em curso, que, baseada em equívocos como o de que a
discriminação era a origem do baixo desempenho escolar dos filhos de
imigrantes, desincentivava o trabalho dos professores, além de minar qualquer
possibilidade de inclusão cultural por meio do ensino.
Reproduzido no jornal local, o
texto provocou a reação de grupos organizados (também de esquerda) e políticos
de Bradford, um dos quais o prefeito da cidade, Mohammed Ajeeb, do Partido
Trabalhista, que exigiu a suspensão do diretor. Honeyford foi afastado, mas
conseguiu na Justiça o direito de retornar ao trabalho. Mas a pressão foi tão
intensa que ele aceitou antecipar a aposentadoria. Nunca mais lecionou ou
dirigiu uma escola. O professor fora cancelado.
A atitude
criminosa das autoridades permitiu a emergência de ressentimentos e conflitos
raciais
Segundo Scruton, no
livro Como Ser um Conservador (Editora Record, 2015), o caso
“foi um exemplo de um prolongado expurgo stalinista executado pela autoridade
de ensino criada para remover todos os sinais de patriotismo de nossas escolas
e apagar a memória da Inglaterra do registro cultural”. E o próprio filósofo
foi cancelado: “Dali em diante, a Salisbury Review foi
rotulada como uma publicação ‘racista’ e minha própria carreira acadêmica foi
posta em xeque”.
Diante de tudo, o óbvio se
impôs: o alerta de Honeyford não foi observado e aquilo que ele temia se tornou
uma realidade na Inglaterra. A cidade de Bradford, por exemplo, passou a ser
palco de uma segregação racial tão profunda quanto a da África do Sul nos
tempos do apartheid. Quem o afirma tem conhecimento de causa: o
psiquiatra e escritor inglês Anthony Daniels, que usa o pseudônimo Theodore
Dalrymple e é colunista aqui na Revista Oeste. Tendo vivido e
trabalhado também no país africano, Dalrymple fez essa comparação num texto
dedicado a Honeyford no livro Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela (É
Realizações, 2015).
Em “O homem que previu os
distúrbios raciais”, Dalrymple defendeu o diagnóstico correto feito pelo
diretor da escola e mostrou como a atitude criminosa das autoridades permitiu a
emergência de ressentimentos e conflitos raciais em Bradford, a exemplo dos
ocorridos em 2001.
Com base naquilo que
testemunhou como médico de hospital público, em outros livros, como A
Vida na Sarjeta, Dalrymple relatou casos terríveis de crimes cometidos por
imigrantes e por seus descendentes nascidos na Inglaterra sob a apatia da
polícia e das instituições políticas e judiciais. Tratei desse assunto,
inclusive, no artigo “O suicídio da Europa”,
publicado aqui na Oeste.
Uma farsa contra o conservador Roger Scruton, perpetrada
por um jornalista de esquerda
Em 2019, 35 anos depois da
publicação do artigo, foi a vez de Scruton sofrer uma nova tentativa de cancelamento
por parte da esquerda britânica. O jornalista George Eaton, da revista inglesa
de esquerda New Statesman, depois de entrevistar o filósofo,
publicou partes editadas da transcrição alterando completamente o sentido das
respostas e fazendo parecer que Scruton era homofóbico e racista.
Antes mesmo que pudesse se
defender, Scruton passou a ser atacado imoderamente por esquerdistas, por
membros do Partido Trabalhista e por integrantes do Partido Conservador. Ele
foi, inclusive, desligado de um cargo não remunerado na comissão Building
Better, Building Beautiful, da Secretaria de Habitação do governo de Theresa
May. O objetivo da comissão era orientar a edificação de novas construções
habitacionais. Com a história pegando fogo, o jornalista da New Statesman divulgou
uma foto no Twitter em que celebrava com uma garrafa de champanhe a demissão de
Scruton e a repercussão do caso.
Scruton só não foi
completamente cancelado porque seu amigo Douglas Murray, também jornalista,
conseguiu uma cópia da gravação da entrevista e a publicou na íntegra na
revista The Spectator. O áudio revelou a farsa do jornalista
da New Statesman e deixou claro que Scruton não era culpado
daquilo de que fora acusado. O caso deu uma reviravolta, os tories que
se precipitaram foram obrigados a se desculpar e ele foi convidado a reassumir
o cargo na comissão de arquitetura do governo. Mas o filósofo faleceu antes que
pudesse fazê-lo.
Desde a década
de 1920 a esquerda brasileira cancela ou tenta cancelar os que considera
inimigos
O caso mais recente de
cancelamento na Inglaterra ocorreu com o historiador David Starkey, autor de
livros best-sellers e apresentador de documentários sobre a
Monarquia Britânica. Depois de dizer numa entrevista que “a escravidão não foi
genocídio, caso contrário não haveria tantos negros na África ou na
Grã-Bretanha” e de criticar o movimento Black Lives Matter, Starkey passou a
ser alvo de ataques de todos os lados, perdeu contratos com as editoras Harper Collins
e Hodder & Stoughton, foi obrigado a se desligar do Fitzwilliam College, da
Universidade de Cambridge, da Universidade Canterbury Christ Church e do The
Mary Rose Trust. Ele se desculpou publicamente, mas nada indica que conseguirá
recuperar o que perdeu.
Honeyford, Scruton, Starkey
são alguns de vários exemplos envolvendo nomes conhecidos que também foram alvo
da turba na Inglaterra, como a escritora J. K. Rowling, e, nos Estados Unidos,
o cartunista Robert Crumb, o humorista David Chapelle, o dramaturgo David
Mamet, o professor da Universidade de Princeton, Joshua T. Katz, e,
recentemente, o cientista Steven Pinker.
No Brasil, desde a década de
1920 a esquerda nativa cancela ou tenta cancelar todos aqueles considerados
inimigos assim como os militantes “traidores”. Foi o caso de Antonio Bernardo Canellas,
dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que ousou desafiar os
bolcheviques no IV Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1922 em
Moscou, e, na volta ao Brasil, também o PCB. Foi julgado, expulso, perseguido
pelo partido, que publicou um panfleto com título autoexplicativo: O
Processo de um Traidor — O Caso do Ex-comunista A. B. Canellas.
Num trecho do panfleto, citado
no livro Um Cadáver ao Sol (Ediouro, 2005), de Iza Salles,
revela-se a declaração de princípios de qualquer cancelamento, do passado e do
presente: “A questão está para nós morta e liquidada, como liquidado e morto
para o movimento revolucionário está Bernardo Canellas, traidor indigno e vil.
Mas é necessário dissecar este cadáver. É preciso desnudá-lo, rasgar-lhe o
couro mau, desfibrar-lhe as carnes ruins, pôr-lhe as vísceras ao sol,
espremer-lhe o fígado esgorgitado de torpeza. Temos o punho rijo e o ferro é de
qualidade”.
É necessário
reagir adequadamente com base na coragem e não se deixar intimidar
Já nos anos 1960, tanto a
esquerda taciturna quanto a festiva cancelavam todos aqueles de esquerda que
não fossem suficientemente de esquerda, todos aqueles que não estavam interessados
em política (os alienados) e todos aqueles que eram suspeitos de apoiar ou
colaborar com o regime militar.
Na década de 1970, a maior
vítima talvez tenha sido o cantor Wilson Simonal. Condenado por ordenar o
sequestro e a tortura do ex-contador de sua empresa, o cantor passou também a
ser acusado por esquerdistas de ser dedo-duro dos militares porque circulou a
informação de que teriam sido agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e
Social) que executaram os crimes a pedido de Simonal. O cantor, que sempre
negou as acusações, foi insultado, cancelado e teve a carreira completamente
destruída sob a apatia covarde dos artistas que tinham medo de receber
tratamento similar por parte da esquerda.
Desde então, vários foram os
alvos, várias foram as vítimas. Como o compositor Tom Jobim, que, em 1986, foi
cancelado por esquerdistas por ter negociado o uso de sua música Águas
de março e sua participação num comercial de TV para a Coca-Cola.
Neste século 21, a vítima mais recente foi o jornalista Leandro Narloch, que,
acusado injusta e abjetamente de fazer comentários homofóbicos, foi cancelado
pela militância e demitido pela CNN Brasil.
Para ser alvo do cancelamento,
não importa se você diz a verdade ou se diz coisas deploráveis, mas qual
posição política você representa e se sua opinião está ou não em desacordo com
o dogma do esquerdista. Para a esquerda, que tem o controle ou exerce enorme
influência sobre os meios de comunicação, universidades, grandes empresas,
basta você ser identificado com a direita para que, estando numa posição
relevante, seja vigiado e punido por qualquer opinião correta ou equivocada —
não importa.
A fúria com que esquerdistas
atacam e destroem a vida de suas vítimas faz parte do método para
fragilizá-las, mas também para dissuadir qualquer um que cogite dizer o que
pensa ou sair em defesa do cancelado. Hoje não é mais necessário um Estado
totalitário para que essa legião consiga aplicar expedientes infames contra
seus inimigos. Lamentavelmente, parte da direita brasileira vem mimetizando
esse comportamento nas redes sociais sob a justificativa de reação simétrica.
Não estou aqui defendendo que
posições políticas infames e opiniões desprezíveis sejam aceitas ou
normalizadas seja lá quem for seu autor e independentemente de sua ideologia.
Acho tão abominável quem defende hoje o comunismo quanto quem defende o
fascismo, o nazismo e ideologias autoritárias e totalitárias de esquerda ou
direita. O problema é outro: o cancelamento como método para calar conservadores,
liberais e todos aqueles que ousam se levantar contra o dogmatismo esquerdista.
Essa atitude covarde no Brasil
se mantém entre os membros das patotas universitárias, jornalísticas,
empresariais, políticas, mas tem havido reação da sociedade. Perante ataques
cada vez mais baixos, as pessoas têm reagido contra quem ataca e em defesa do
atacado, como aconteceu em relação a Narloch e casos anteriores. É a única
forma, aliás, de impedir que a horda esquerdista determine o rumo das coisas,
que aja impunemente e que faça parecer ser mais poderosa do que efetivamente é.
O método do cancelamento não
pode prosperar, pois, se me permitem o trocadilho em inglês, cancel
culture is a cancer culture. E só há uma forma de neutralizá-lo: reagindo
adequadamente com base na coragem dos que não se deixam intimidar.
Título e Texto: Bruno
Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em
Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar
no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora
Record). Revista Oeste, 17-7-2020, 9h30
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