quarta-feira, 17 de novembro de 2010

De Aristóteles a Savonarola

A crise, em particular a nossa patriótica crise, antes de ser política é do domínio da ética e da decência

Pedro Norton

Girolamo Savonarola, 
pintura de Fra Bartolomeo, 1498,
 Museu de São Marcos, Florença, Itália
A linha que separa a democracia da sua forma degenerada, a demagogia, é frágil e ténue. A afirmação não é original, muito menos recente. Aristóteles que o diga. E a linha que separa a apologia da ética na vida pública e política, da exaltação dos moralismos bacocos e dos virtuosismos intolerantes não é menos delicada. Também não sou eu que o digo. Limito-me a olhar a história. De Savonarola à Revolução Francesa, os exemplos não faltam.

Feito o aviso, não me parece menos verdade que é precisamente nos defeitos da democracia e na falência da ética - ou da simples decência para não pôr a fasquia tão alta - que germinam as sementes da demagogia, das derivas moralistas e das verdadeiras tragédias políticas e sociais que normalmente destas decorrem. Ora, é da mais elementar razoabilidade reconhecer que, provavelmente no Mundo Ocidental, mas seguramente em Portugal, estamos há muito a preparar um caldo que é propiciador do aparecimento deste tipo de fenómenos.

Por um lado, a crise, e em particular a nossa patriótica crise, antes de ser financeira e económica (que infelizmente também é) é política. Porque é da degenerescência da nossa vida política, da irresponsabilidade militante dos nossos governantes, mas também (há que reconhecê-lo) da nossa comodista propensão para afastar e trucidar todos quantos, de entre estes, se atreveram a avisar-nos que a nossa riqueza tinha pés de barro, que se faz o descalabro em que estamos mergulhados. E - o círculo fecha-se - pode bem ser da dimensão trágica desta crise, agora efetivamente económica e financeira, que se fará uma crise política de imprevisíveis consequências. Porque o desemprego, o desespero, a miséria podem bem ser a faísca que faltava para fazer saltar o barril de pólvora que é um regime político há muito mergulhado numa profunda crise de legitimação. A democracia, não me canso de repeti-lo, não é um acquis civilizacional eterno. Os encantos demagógicos estão aí ao virar da esquina. Os apelos messiânicos dos cesarismos também.

Por outro lado, a crise, em particular a nossa patriótica crise, antes de ser política é do domínio da ética e da decência. O crescente divórcio entre eleitos e eleitores, entre representantes e representados, a tal crise de legitimação, faz-se, obviamente, de muitos e diversos ingredientes que não cabe aqui enunciar. Mas um destes é, seguramente, o triunfo de um paradigma de desenvolvimento social e económico, de um modelo de "sucesso" pessoal, empresarial e social que deixou de ter qualquer referencial ético. Ora, acontece que, paradoxalmente, é num terreno de onde foram banidas todas e quaisquer referências à ética que mais facilmente medram os apelos aos moralismos intolerantes.

A solução? Quem me dera ter uma pronta a servir. Certezas, em bom rigor, só tenho estas: o melhor antídoto para a demagogia é o reforço dos mecanismos de legitimação democrática; o melhor antídoto para as intolerâncias "virtuosas" é a recuperação de referenciais éticos mínimos que possam ser partilhados e servir de chão comum a uma comunidade política plenamente legitimada.
Título e Texto: Pedro Norton, revista Visão, 11 a 17-11-2010

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