É comum brasileiro ir a Portugal em busca de um pequeno Brasil como português vir ao Brasil em busca de um imenso Portugal, ambos identificando vantagens e desvantagens. Há obviamente muitas coisas em comum, como o sentimentalismo – que pode ser ou doçura e hospitalidade ou orgulho e provincianismo – e a própria mania de autoflagelação, de dizer “isto aqui não tem jeito” como subproduto do “isto aqui poderia ter sido grande”. Por que pensar o tempo todo em algo que se diz odiar? Só se esse ódio não passar de amor frustrado. Até cabeças independentes oscilaram nessa gangorra.
Brasileiros adoram contar piada sobre português e demonizar a “herança ibérica”. Os portugueses são literais demais, sim (perguntei a um garçom de onde vinha a lagosta e ele respondeu: “Da costa”), e autores como Sérgio Buarque de Holanda (para não falar em Adam Smith) mostraram com clareza o atraso capitalista da colonização latina. Mas por trás das piadas talvez esteja um desejo de expiação da própria desmemória e desorganização – vide a burocracia que eles e nós ainda enfrentamos todo dia –, e seguir culpando a colonização depois de quase 200 anos de independência é pueril.
Há também quem diga que a formação lusitana nos proporcionou esta maneira de ser, esta democracia racial e cordial, em contraposição à agressividade racista de outras nações européias. Bem, já passou da hora de enxergar que a modernidade pede muito mais que descontração. Somos, por sinal, menos formais e mal-humorados do que os portugueses em média, mas por isso mesmo se criou a noção de que somos únicos no planeta. É como se o Brasil ainda fosse a encarnação possível do império que dom Sebastião deixou escapar. Os portugueses são os primeiros a elogiar o “potencial” da gigante ex-colônia.
Isso se vê claramente no romance Rio das Flores, de Miguel Souza Tavares (Companhia das Letras), autor de Equador. Tavares, manipulador hábil de clichês do romance histórico (embora não capte a fala popular brasileira e insista em grafar São Paulo como “S. Paulo”), descreve dois irmãos que crescem no Alentejo sob um pai direitista e se dividem quando chega o Estado Novo de Salazar. Um deles, Diogo, vem ao Brasil tentar nova vida, se apaixona por uma mulata e, mesmo sob outro Estado Novo, o de Getúlio, se compraz na alegria sensual “que brotava das montanhas e florestas”... Até o vira-casaca de Getúlio na Segunda Guerra é elogiado.
Portugal consome em massa a música e a TV do Brasil. Ao mesmo tempo, conhece pouco a literatura brasileira, enquanto nós estudamos a portuguesa em nossas escolas, e se queixa do acordo ortográfico como se fosse um gesto imperialista às avessas. (O acordo não é quase nada. Tem coisas boas, como a extinção de alguns acentos que facilitaria o ensino, e ruins, como a incapacidade de admitir duas grafias para uma mesma palavra, como em inglês se faz com “theatre” e “theater”. Logo, sendo quase nada, não é necessário.) A dupla Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, em Os Brasileiros (Língua Geral), diz, sintomaticamente, “tu, português, não vales mais que ele, brasileiro”.
Portugal amarga crescimento de 1,6% neste ano (2008) e vê ressurgir a nostalgia salazarista, mas melhorou muito depois da inserção na Europa. O Brasil mudou ainda mais ao longo do século 20, até pelos outros fluxos de imigração (italianos, japoneses, libaneses), e especialmente a partir dos anos JK – que tinha lá seus negócios em Portugal – desenvolveu identidade cultural mais própria. Só que ainda é pensado e governado como se não, como se ainda fosse o “sonho das eras português”.
Passeando e comendo pelas ruas de Lisboa, ao contrário do que disse Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, não precisamos revisitar nenhuma mágoa nem reclamar que “nada sois que eu me sinta”. Apenas saborear suas doçuras, livres de orgulho salgado.
Daniel Piza, Estado de São Paulo, 2008Lisboa, 29-09-2010. Foto: JP |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-