Em meio às previsíveis
louvações a Saramago por sua morte, falou-se tanto de sua obra (ainda que
relativamente pouco de seus méritos linguísticos próprios – porque de fato
poucos –, ou elididos ou substituídos por adjetivos altissonantes) quanto de
sua “lucidez”, “coerência”, “firmeza” ou “sensibilidade”. Trocando em miúdos,
seu comunismo. E ainda que alguns veículos tenham dado destaque negativo, por
exemplo, a seu acrítico apoio ao governo cubano, a maioria das manifestações ou
edulcorou sua ideologia ou a desconsiderou (coisa que ele próprio jamais fez).
Mas se em vez de comunista ele fosse fascista, tal fato também teria sido assim
edulcorado? Na verdade, não. Teria sido descaracterizado. A diferença é
importante.
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Ezra Pound (1885-1972). Foto: Alvin Langdon Coburn (1882-1966) |
Edulcorar é adocicar,
amenizar, positivar. Saramago era então comunista não porque fosse
antidemocrático, muito embora, por ser comunista, fosse antidemocrático, mas
porque era “comprometido com seu tempo” (desconsiderando a morte histórica do
comunismo) e “sensível à injustiça”
(desde que não de responsabilidade de ditadores de esquerda). Já
descaracterizar é negar um caráter, uma característica. Assim, quando se tornou
necessário explicar o apoio de Pound ao regime de Mussolini sem considerar seu
apoio ao regime de Mussolini, ele foi diagnosticado como louco, o que antes
jamais fora, nem na vida privada nem na pública. Algo equivalente se passou e
se passa com Heidegger em relação ao nazismo. Pois aceitar que Pound tenha sido
fascista e Heidegger nazista cria um problema epistemológico e outro pessoal
aparentemente insolúveis. Em termos pessoais, como posso admirar ou respeitar a
obra de um fascista? Em termos epistemológicos, a obra de um fascista não deve
ser ela mesma fascista, em algum grau? O que nos devolve ao problema pessoal:
como posso admirar ou respeitar uma obra com elementos fascistas?
A questão, porém, não se
coloca para obras de comunistas como Saramago. Pois não apenas se pode como,
segundo muitos, deve-se não só respeitá-la como ainda admirá-la.
Não tenho nada contra a se
respeitar e admirar a obra de um estalinista. Pois entendo que a obra de um
estalinista será respeitável e admirável em algum grau, se for afinal em algum
grau admirável e respeitável, a despeito de seu autor, e não devido a ele –
como, de fato, alguns argumentaram em relação a Saramago. O mesmo, portanto,
deveria valer para um fascista, ao menos no caso de um fascista artista – do
mesmo modo que Saramago era um comunista escritor. Ainda que não para um
artista fascista – ou para um escritor comunista, ou seja, realista-socialista.
Tampouco para um pensador fascista, por este não poder se diferenciar de um
fascista pensador. Enfim, se Saramago e Pound, assim como García Márquez e
Borges, podem ser lidos sem maiores questionamentos (a não ser quanto às
diferenças verdadeiramente irredutíveis entre suas respectivas qualidades
artísticas), o mesmo não vale para Heidegger, porque um filósofo lida com
conceitos, assim como a ideologia.
Porém isso não acontece. O
fascismo de Pound foi simplesmente negado, já em seu tempo, por sua conveniente
loucura pós-Segunda Guerra, e o direitismo de Borges foi, enquanto vivo,
fortemente repudiado, tendo sido, em termos práticos, o fator responsável por
ele não haver ganhado o Nobel, ao mesmo tempo que um escritor latino-americano de
estatura literária infinitamente inferior, mas devidamente de esquerda, Gabriel
García Márquez, o recebia. Premia-se, em mais de um sentido, o escritor de
esquerda, e condena-se, de mais de uma forma, o escritor de direita. Porque,
como dito, ser de esquerda se pode, e talvez mesmo se deva, mas ser de direita
não se deve nem se pode. Por isso mesmo, ser um escritor de esquerda não faz
mal algum à carreira literária, muito ao contrário, enquanto a um escritor de
direita só é dado se impor pelo caminho estreito do puro mérito.
O problema é que tanto a
esquerda estalinista – caso do próprio Saramago – quanto a direita fascista –
caso de Pound, mas não de Borges – são igualmente antidemocráticas. Não
obstante, seu antidemocratismo não é percebido do mesmo modo. Daí um ser
edulcorado – como no caso de Saramago – e o outro ser repudiado ou
descaracterizado – como no caso de Pound. Há, então, o antidemocratismo
aceitável, o da esquerda, e o antidemocratismo inaceitável, o da direita.
A questão não teria sentido caso
o direito fosse concedido pela própria esquerda – que, ao menos a
revolucionária, não é democrática, mas favorável à ditadura do partido único.
Porém a fonte do direito são aqui os próprios democratas, o que torna a questão
tanto mais precisa quanto surpreendente: por que, afinal, setores progressistas
das sociedades democráticas toleram o desdém à democracia à esquerda?
A resposta, ou melhor, as
respostas, além de múltiplas, são relativamente fáceis, ainda que talvez
insuficientes. Em parte, a questão é teleológica: o socialismo traria no final
a redenção, ao contrário do fascismo, que não traz nada além de si mesmo. Em
parte, é o discurso das intenções sobre a realidade dos fatos: eles são no
fundo bons, como pretendem, apenas cometeram erros. Em parte, são razões
históricas: depois dos processos de Moscou, em que Stálin eliminou a nata da
Revolução Russa, da perseguição a anarquistas e trotskistas na guerra civil
espanhola e do pacto nazissoviético, a esquerda como um todo se engajou
francamente na luta contra o nazifascismo. Em parte, é a aura romântica do
voluntarismo: Trótski, Che etc. Em parte, é porque a esquerda representa a
rejeição ao capitalismo, do qual os democratas gostam, mesmo porque gostam do
conforto capitalista, mas do qual muitos não gostam de gostar.
Pois ao menos desde meados do
século XIX, mais precisamente, desde 1848, com a publicação do Manifesto
comunista, o capitalismo é apontado como o mal maior, o maior mal possível,
para cuja supressão todos os meios, portanto, são bons.
Menos, talvez, o genocídio. Os
milhões de mortos por Stálin, as dezenas de milhões mortos por Mao Tse Tung e o
milhão de cambojanos mortos por Pol Pot, entre tantos outros, tornaram então o
estalinismo, também conhecido como “socialismo real”, ainda mais inaceitável do
que o próprio capitalismo e sua tradução política paradigmática, a democracia
liberal. Não se trata mais, assim, de afirmar as qualidades irresistíveis do
capitalismo, como fazem os liberais e os direitistas, mas de simplesmente não
negar os vícios, maiores e piores, do “socialismo real”.
Em suma, o “socialismo real”
deixou como herança histórico-político-ideológica a necessidade de escolher
entre o ruim, o capitalismo e a democracia liberal, e o pior, o próprio
“socialismo real”, com sua mistura tóxica de inépcia econômica e opressão
política. Sendo assim, o ruim é naturalmente melhor.
Ocorre que o ruim, se melhor,
é também real. Já o mito da bondade “essencial” da esquerda, pelas prováveis
razões expostas acima, como todo mito, tem uma inércia própria, ou seja,
impermeável aos fatos, e na verdade desgostosa deles, ou não se necessitaria de
mitos. Enfim, o mito é, por construção, sempre “melhor” do que a realidade.
Saramago que o diga.
Título e Texto: Luis
Dolhnikoff. Publicado originalmente no site “SIBILA”
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Painel com fotos das vítimas do regime de Pol Pot, no Museu Tuol Sleng, em Phnom Penh |
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