Luiz Felipe Pondé
A "culpa" do que
ocorre em Londres não é do consumo. Muitos se acostumaram a ser tratados como
bebês
Você sabia que agora existe em
Londres o movimento dos sem-iPad? Coitadinhos deles. Quebram tudo porque a
malvada sociedade do consumo os obriga a desejar iPads... No passado todo mundo
era "obrigado" a desejar cavalos, tecidos de seda, especiarias,
facas, tambores, ouro, mulheres...
Como ficam as pessoas que
desejam, não têm, mas nem por isso saqueiam lojas, mas sim trabalham duro?
Seriam estes uns idiotas por saberem que nem tudo que queremos podemos ter e
que a vida sempre foi dura?
Esta questão é moral. Dizer
que não é moral é não saber o que é moral, ou apenas oportunismo... moral.
Resistir ao desejo é um problema de caráter. Um dos pecados do pensamento
público hoje é não reconhecer o conceito de caráter.
Logo existirão os
"sem-Ferrari", os "sem-Blackberry", os
"sem-Prada" também? Que tal um "bolsa Blackberry"? Devemos
criar um imposto para os "sem-Blackberry"?
Na Inglaterra, dizem, existem
famílias que nunca trabalharam vivendo graças ao governo há gerações. É, tem
gente que ainda não aprendeu que não existe almoço de graça.
Mas esse fenômeno de querer
desculpar todo mundo da responsabilidade moral do que faz não é invenção de
quem hoje justifica a violência em Londres clamando por justiça social na
distribuição de iPads.
É conhecida a passagem na qual
o "homem do subsolo" no livro "Memórias do Subsolo", de
Dostoiévski, abre suas confissões dizendo que é um homem amargo. Em seguida,
alude à teoria comum de que ele assim o seria por sofrer do fígado. Logo, a
culpa por ele ser amargo seria do fígado.
Ele recusa tal desculpa para
sua personalidade insuportável e prefere assumir que é mesmo um homem mau. Eis
um homem de caráter, coisa rara hoje em dia.
Agora, todo mundo gosta de
"algum fígado" (a sociedade de consumo, o patriarcalismo, a Apple)
que justifique suas misérias morais.
O profeta russo percebeu que
as ciências preparavam uma série de teorias que tirariam a responsabilidade do
homem pelos seus atos.
A moda pegou nos jantares
inteligentes e hoje temos vários tipos de "teorias do fígado" para
justificar nossas misérias morais.
Uma delas é a teoria de que
somos construídos socialmente.
Dito de outra forma: O
"sujeito é um constructo social". Logo, quebro loja em Londres porque
fui "construído" para enlouquecer se não tenho um iPad. Tadinho...
Tem gente por aí que tem
verdadeiro orgasmo com essa bobagem.
Não resta dúvida de que há
algo verdadeiro na ideia de que somos influenciados pelo meio em que vivemos.
Por exemplo, se você nasce
numa favela, isso não vai passar "desapercebido" nos seus modos à
mesa, no seu comportamento cotidiano e nas suas expectativas e possibilidades
na vida.
Mas aí dizer que "o
sujeito é um constructo social" é pura picaretagem intelectual. Ninguém
consegue ou conseguirá provar isso nunca, mas quem precisa de "provas"
quando o que está em jogo são as ciências humanas, que de "ciência"
não têm nada.
Esse blá-blá-blá não só exime o
sujeito da responsabilidade moral, como abre a porta para todo tipo de
"experimento" psicossocial, político ou justificativa moral, que, na realidade,
serve pra qualquer um inventar todo tipo de conversa fiada em ciências humanas
"práticas".
Por que tanta gente adora essa
teoria? Suponho que, antes de tudo, o alivie de ser você e coloque a
"culpa" de você ser você no pai, na mãe, na escola, na vizinha, na
sociedade, no consumo, na igreja, no patriarcalismo, no machismo, na cama de
casal, no iPad, no diabo a quatro. Menos em você.
Temos aí uma prova de que
grande parte das ciências humanas não reconhece o conceito de caráter.
Moral é exatamente você
resistir a impulsos que outras pessoas, sem caráter, não resistem. Já leu
Aristóteles? Kant?
A "culpa" do que
hoje acontece em Londres não é do consumo. Homens sempre quebram coisas de vez
em quando e querem coisas sem esforço. As causas podem variar. Hoje em dia,
seguramente, uma delas é que muita gente está acostumada a um Estado de
bem-estar social que os trata como bebês.
A preguiça, sim, é um traço
universal do ser humano.
Título e Texto: Luiz Felipe Pondé, Folha de SP,
22-08-2011
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