terça-feira, 22 de maio de 2012

A força da irracionalidade

André Abrantes Amaral
Perante o desastre, a irracionalidade dos homens levará à desagregação da Europa ou há sua unificação numa entidade ainda mais artificial e explosiva

François Hollande, foto: Lusa
Se a eleição de François Hollande para o Eliseu teve algum efeito, foi a convicção de que a crise se resolve com um pouco de boa vontade. Que se não formos tão austeros, tão exigentes, se facilitarmos um bocadinho, o problema desaparece. Os adeptos desta teoria partem do pressuposto que a crise se acentuou com a quebra da despesa dos estados, como se ela não fosse fruto da dívida pública que estrangula as economias. Vêem a Europa como um projecto que prometia uma sociedade justa, sem diferenças para atenuar, sem necessidades por satisfazer, a cair que nem um baralho de cartas, devido aos efeitos nefastos da globalização que os actuais dirigentes europeus, por não serem do calibre de Mitterrand, Delors e de Monnet, não conseguem controlar. A vontade de que tudo volte ao que era, está na génese da irracionalidade com que se analisa as causas da crise e se procuram soluções. Ou talvez seja pior ainda. Talvez a irracionalidade não seja de agora, mas de quando se acreditou piamente numa instituição supranacional, não eleita, com o fito de criar, de cima para baixo, uma união política que fizesse frente aos EUA.
O projecto europeu, que se iniciou para evitar que a Alemanha controlasse o carvão e o aço e mais tarde se estendeu à liberalização dos mercados, acabou por dar lugar a uma entidade política acima dos estados. A par disso, a crença na capacidade dos estados criarem e distribuírem riqueza, explica a existência de autênticos monstros que consomem os esforços dos cidadãos. Actualmente, não há parte da nossa vida em que o Estado não esteja presente como receptor de receitas. A irracionalidade também deu nisto: os governos, porque se considera que criam riqueza, precisam das receitas dos privados para produzir riqueza. Daí o aumento contínuo da carga fiscal, mesmo quando a economia crescia; daí os défices públicos que já existiam muito antes da crise de hoje. A mesma irracionalidade que permitiu que o dinheiro fosse mais barato que o valor de mercado, que levou os políticos a condicionar os bancos a emprestar dinheiro aos cidadãos, não para produzirem mas para gastarem e os convenceu a comprarem casa em vez de a arrendar, é a mesma que se prepara para agir nos meses mais próximos e hipotecar o que resta das nossas vidas.
Nos últimos meses os europeus tentaram ser racionais e assustaram-se. Intimidaram-se com a dimensão do desastre, decidiram fechar novamente os olhos e estão prontos a saltar de cabeça. A França tem a sua economia estagnada e uma dívida fortíssima, pelo que um braço-de-ferro com a Alemanha de Merkel será complicado. Sucede que, para muita boa gente o dinheiro vale o que os governos quiserem que ele valha. Não é difícil que os estados se continuem a endividar se o dinheiro valer menos e, dessa forma, também a dívida. A acontecer, não será a primeira vez que a um estado deixa de pagar o que deve. A pouca força negocial de Hollande pode fazê-lo procurar o apoio na instabilidade social que faz os mercados ameaçar o euro. É a mesma estratégia utilizada pela extrema-esquerda grega: se não for como queremos será o caos. Algo que pode forçar Merkel a ceder em troca de um reforço das instituições europeias, de uma união fiscal e política que abafe de vez a soberania dos países. A loucura a gerar loucura. Sem que demos conta, ficamos pobres e vemos a liberalização do mercado europeu a acabar num super estado centralista, acima da nossa capacidade de compreensão.
A partir daqui tudo é possível: um federalismo asfixiante ou uma desagregação da Europa que leve ao proteccionismo dos Estados. São meras suposições, dir-me-ão. Mas a irracionalidade não me deixa alternativa. É ela que explica o porquê das guerras que liquidaram a velha Europa. A que convence alguns que seja com mais dívida que saímos da crise da dívida. A que nos permite antever o que pode acontecer. Porque quando todos os cuidados são poucos, a irracionalidade dos homens é a primeira coisa a temer.
Título e Texto: André Abrantes Amaral, jornal “i”, 19-05-2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-