terça-feira, 29 de maio de 2012

A experiência na Casa Pia e os viciados em indignação. Ou, "jornalismo" em Portugal

Carlos Guimarães Pinto
 
Depois da gripe das aves, das agências de rating, do Pingo Doce, da emigração, da selecção, das intervenções policiais, do Pingo Doce outra vez, dos subsídios ao cinema e do Relvas, eis que surje um novo motivo para indignação. Há 16 anos atrás foi conduzida uma investigação para entender os efeitos neurocomportamentais da utilização de amálgamas de prata contendo mercúrio nos dentes, utilizando como cobaias crianças da Casa Pia. As vozes mais inflamadas já vieram comparar esta experiência à dos regimes nazis. Uma reportagem emotiva na RTP cheia de deficiências e erros de investigação despoletou a onda indignação. Porém, antes de se indignar convém fazer uma reflexão, ler o estudo (é pequeno) e fazer as questões certas.
Para aqueles que não leram o estudo, este consistiu basicamente em fazer tratamentos dentários a um grupo de 250 crianças da Casa Pia recorrendo a amálgamas de prata (standard na altura e ainda hoje) e a um segundo grupo de 250 crianças recorrendo a um composto diferente que não continha mercúrio. A evolução neurocomportamental dos dois grupos foi depois acompanhada para tentar entender se existiam diferenças que pudessem ser causadas pelo mercúrio.
A primeira questão a fazer é saber se a experiência expôs as crianças a qualquer substância a que não teriam sido expostas caso a experiência não tivesse sido feita. A resposta aqui é um claro não. O tratamento com chumbos de prata contendo mercúrio era o standard na altura (a maior parte dos leitores deste blog terão um ou mais dentes com este tipo de composto), e se as crianças tivessem tratamento dentário normal, seria esse o tipo de amálgamas que receberiam. Quando muito, a experiência fez com que 250 crianças não tivessem amálgamas de prata.
A segunda questão passará por saber se as crianças foram expostas a mais mercúrio do que seriam sem a experiência, ou seja, se foram colocados chumbos desnecessários. Aqui a resposta é mais complicada. No estudo afirma-se que a mediana de número de amálgamas nas crianças com amálgamas de prata foi 16, o que parece ser um número elevado. Porém, convém olhar para os factores que levaram à escolha das crianças da Casa Pia para o estudo: a universidade de Lisboa já tinha identificado aquelas crianças como sendo um grupo de alto risco em termos de higiene oral (se houvesse dúvidas, mais uma prova das “vantagens” da institucionalização do estado). Para além disso, apenas as crianças que já tivessem cáries foram incluidas no estudo. Com todos estes factores, deixa de ser tão surpreendente que a mediana de chumbos seja 16. Ainda menos surpreendente será, se considerarmos que entre as crianças que não foram tratadas com amálgamas de prata a mediana foi de 21. Se o objectivo fosse expôr as crianças a mais mercúrio do que o necessário, não haveria necessidade de sobrecarregar também as crianças no grupo de controle.
Em resumo, tudo o que a experiência fez foi observar a reacção de um grupo de crianças a um tratamento que teriam tido de qualquer forma porque era o standard na altura. As crianças não foram expostas a nenhum risco adicional devido à experiência. Bem sei que esta explicação não encaixa na narrativa de crianças pobrezinhas abusadas por uma universidade imperialista americana que seria tão bom material de indignação, mas a realidade é mesmo assim.
Título, Imagem e Texto: Carlos Guimarães Pinto, no blogue “O Insurgente”, 29-05-2012

Comentário:
Obviamente que foi uma não-notícia em busca de sensacionalismo barato. As amálgamas com mercúrio ainda hoje se utilizam em pacientes com casos especificos, por exemplo, quando se verifica não terem boas práticas de higiene (e nem imaginam quantos são, mesmo de classes sociais ditas superiores).
Alguns dos entrevistados não me pareceram muito credíveis, baseando-se em teorias e histórias que pareciam mais de uma seita religiosa que de experiência ciêntifica. Se não fosse sério daria vontade de rir… Mas o objectivo foi alcançado, vilipediando uma vez mais a Casa Pia e assustando uma população que em grande parte tem tratamentos dentários feitos com amálgama. Em troca de audiências…
Note-se que há estudos cientificos realizados em países do terceiro mundo que, de facto, tocam as raias da infâmia. Por exemplo, para falar de um caso que vi referido há uns anos atrás, aplicar compósito de grande qualidade em crianças de um país africano, numa clínica onde nem sequer há um sistema de aspiração é um disparate, uma fraude que apenas serve para fazer curriculo. Os resultados nunca poderão ser satisfatórios a prazo. Além dos compósitos exigirem higiene e vigilância em muitos casos impossíveis de obter.
Mas aqui, nesta notícia da Casa Pia, estamos muito, mas mesmo muito longe desses casos. Trata-se apenas de um aproveitamento sensacionalista de algo que é normal e inócuo.

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