sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Preto e branco


Helena Matos
Este frenesi de causas urgentes em que vivemos é uma coisa muito cansativa. Nos últimos tempos, assim que me recorde, tivemos o problema da Faixa de Gaza, o aquecimento global, a primavera árabe, a revolução do Papa Francisco e agora, de repente, todos estamos convocados para o funeral de Mandela.

Para cúmulo da fantasia até se inventou um Cavaco Silva perseguindo Mandela, o que além de falso se torna ainda mais ridículo quando nos lembramos do embaraçoso episódio que, meses antes da libertação de Mandela, levou três políticos portugueses, um deles filho do então presidente da Republica Mário Soares, a serem levados de Angola para um hospital de Pretória, militar por sinal, sem que a questão ‘apartheid' e a situação de Mandela tivesse colocado, a eles e às suas famílias, qualquer entrave moral ou material.

Sei que é extremamente impopular escrever isto mas a verdade é que se Mandela tivesse nascido na Europa teria sido igualmente um grande líder, à semelhança daqueles que reconstruíram a Europa no pós-guerra. Mas jamais seria tratado como uma personalidade única e muito menos a sua morte geraria este tipo de reação. O perdão faz parte da história europeia e faz de tal forma parte que já nem o valorizamos quando acontece entre nós ou entre aqueles que reconhecemos como iguais. Só assim se explica que não se destaque a imensa lição para o mundo subjacente a cada encontro, a cada viagem, a cada acordo que o estado de Israel celebra com a Alemanha ou que muitos dos estados europeus firmam entre si. Qualquer família polaca, russa ou alemã tem atrás de si um imenso património de perdão da segregação, dos maus tratos e do genocídio. Património esse sem o qual não conseguiríamos viver nesta Europa que, com todos os seus defeitos e também pela forma como os ultrapassou, é do mais civilizado que a humanidade já conseguiu.

Na verdade o que temos neste endeusamento - no sentido literal do termo - de Mandela é a manifestação de uma espécie de racismo paternalista de quem hoje faz negócios em África com a mesma ligeireza ética com que no passado ali semeou colonatos e conflitos: tiram-se os benefícios políticos e materiais possíveis das apostas em determinados homens e na hora dos problemas ninguém no hemisfério norte se lembra de alguma vez ter conversado mais que dois minutos com aquele líder deposto.

Por ironia, Mandela, uma vez libertado, pôs em prática aquilo que no hemisfério norte os ditos defensores dos povos africanos mais contestavam: acreditou e lutou por um país onde brancos e negros pudessem viver em paz. Ou seja um país antítese dos desvarios defendidos por muitos líderes negros norte-americanos impropriamente chamados combatentes pelos direitos civis, que entre outras coisas propunham a constituição de um estado exclusivamente para negros nos EUA. Um país donde os brancos que ali vivem e nasceram não tivessem de equacionar uma fuga em massa, para cúmulo sendo designados como retornados, como se a pigmentação da sua pele os impedisse de ser africanos e lhe determinasse um destino biológico de retorno a uma Europa que muitos deles nunca tinham pisado.

Como bem se vê o ‘apartheid' e o racismo têm muitos rostos mas têm em comum a obstinação de ver o mundo a preto e branco.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Econômico, 10-12-2013

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