Helena Matos
Este frenesi de causas urgentes em que vivemos é
uma coisa muito cansativa. Nos últimos tempos, assim que me recorde, tivemos o
problema da Faixa de Gaza, o aquecimento global, a primavera árabe, a revolução
do Papa Francisco e agora, de repente, todos estamos convocados para o funeral
de Mandela.
Para cúmulo da fantasia até se inventou um Cavaco
Silva perseguindo Mandela, o que além de falso se torna ainda mais ridículo
quando nos lembramos do embaraçoso episódio que, meses antes da libertação de
Mandela, levou três políticos portugueses, um deles filho do então presidente
da Republica Mário Soares, a serem levados de Angola para um hospital de
Pretória, militar por sinal, sem que a questão ‘apartheid' e a situação de
Mandela tivesse colocado, a eles e às suas famílias, qualquer entrave moral ou
material.
Sei que é extremamente impopular escrever isto mas
a verdade é que se Mandela tivesse nascido na Europa teria sido igualmente um
grande líder, à semelhança daqueles que reconstruíram a Europa no pós-guerra.
Mas jamais seria tratado como uma personalidade única e muito menos a sua morte
geraria este tipo de reação. O perdão faz parte da história europeia e faz de
tal forma parte que já nem o valorizamos quando acontece entre nós ou entre
aqueles que reconhecemos como iguais. Só assim se explica que não se destaque a
imensa lição para o mundo subjacente a cada encontro, a cada viagem, a cada
acordo que o estado de Israel celebra com a Alemanha ou que muitos dos estados
europeus firmam entre si. Qualquer família polaca, russa ou alemã tem atrás de
si um imenso património de perdão da segregação, dos maus tratos e do
genocídio. Património esse sem o qual não conseguiríamos viver nesta Europa
que, com todos os seus defeitos e também pela forma como os ultrapassou, é do
mais civilizado que a humanidade já conseguiu.
Na verdade o que temos neste endeusamento - no
sentido literal do termo - de Mandela é a manifestação de uma espécie de
racismo paternalista de quem hoje faz negócios em África com a mesma ligeireza
ética com que no passado ali semeou colonatos e conflitos: tiram-se os
benefícios políticos e materiais possíveis das apostas em determinados homens e
na hora dos problemas ninguém no hemisfério norte se lembra de alguma vez ter
conversado mais que dois minutos com aquele líder deposto.
Por ironia, Mandela, uma vez libertado, pôs em
prática aquilo que no hemisfério norte os ditos defensores dos povos africanos
mais contestavam: acreditou e lutou por um país onde brancos e negros pudessem
viver em paz. Ou seja um país antítese dos desvarios defendidos por muitos
líderes negros norte-americanos impropriamente chamados combatentes pelos
direitos civis, que entre outras coisas propunham a constituição de um estado
exclusivamente para negros nos EUA. Um país donde os brancos que ali vivem e
nasceram não tivessem de equacionar uma fuga em massa, para cúmulo sendo
designados como retornados, como se a pigmentação da sua pele os impedisse de
ser africanos e lhe determinasse um destino biológico de retorno a uma Europa
que muitos deles nunca tinham pisado.
Como bem se vê o ‘apartheid' e o racismo têm
muitos rostos mas têm em comum a obstinação de ver o mundo a preto e branco.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Econômico, 10-12-2013
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