A operação demorou pouco
mais de cinco minutos e consistiu numa saraivada de mais de cem tiros. O pânico
tomou conta daquela zona do bairro da Boa Esperança, na comuna do Kikolo,
município de Cacuaco, Luanda.
“Parecia guerra”, conta
Adelina José Baia, de 38 anos.
Tratava-se da operação de rapto
do irmão de Adelina, Domingos dos Santos José, de 34 anos, por um grupo de
elementos da Secção Municipal de Investigação Criminal de Cacuaco (SMIC). A
operação ocorreu a 9 de Fevereiro de 2013, perto das 18 horas. Desde então, o
jovem continua desaparecido e a sua família teme que tenha sido executado pelos
agentes policiais.
Adelina José Baia e José
Garcia Baia testemunharam a captura de Domingos dos Santos José, mesmo ao lado
da casa dos seus pais, onde este estacionara uma viatura Toyota Land Cruiser.
Narrativa
De acordo com a narrativa
familiar, os irmãos tinham saído do óbito de uma sobrinha, Mana, que falecera
na madrugada do mesmo dia. No período da tarde, receberam um telefonema a
informá-los da morte de outro sobrinho, Manucho. Domingos dos Santos José, também
conhecido por Guda, decidiu ir a casa tomar banho e trocar de roupa antes de se
dirigir, com a restante família, para o óbito seguinte.
Adelina José disse ao Maka
Angola que o trabalho do seu irmão consistia em serviços de táxi entre Luanda,
o Huambo e Bié. Naquela manhã, recebera o veículo novo, ainda com plásticos nos
assentos, para entregá-lo a um cliente na província do Bié. Adiou a viagem
devido à morte da sobrinha.
Adelina José Baia explica que
o irmão ligou a ignição da sua viatura e logo se apercebeu da aproximação de
homens armados, vestidos à civil. “Ele pensou que eram bandidos que queriam
assaltá-lo. Tentou fazer marcha-atrás e um dos homens armados disparou contra o
pneu e furou-o”, relata a testemunha que, nesse momento, identificou nove
homens armados e assistiu ao início do tiroteio.
A viatura foi embater contra o
muro de um quintal, tendo-o destruído parcialmente. Domingos dos Santos José
saiu do carro e tentou fugir a pé. Foi logo capturado e imediatamente começou o
espancamento.
José Garcia Baia acercou-se do
irmão, já dominado pelos seus captores, e este tentou entregar-lhe a sua
carteira de documentos. “Os agentes apontaram-me as armas e disseram-me para
desaparecer dali”, afirma.
O irmão mais novo insistiu e
viu os coletes de identificação com as inscrições da Direcção Nacional de
Investigação Criminal (DNIC) nos assentos da carrinha Toyota Hilux, de cabine
dupla, uma das viaturas que transportaram os protagonistas da operação.
Várias testemunhas locais
reconheceram a presença, no local, do então chefe da Secção Municipal de
Investigação Criminal (SMIC) de Cacuaco, Tony Barros. O referido oficial exerce
actualmente as mesmas funções no distrito urbano da Maianga, em Luanda.
“Notámos que o Tony Barros
estava a comandar as operações a partir da sua viatura, um Suzuky Jimmy cor de
vinho, com vidros fumados e matrícula [omitida]. Os jovens do bairro começaram
a gritar o nome dele e identificaram também os investigadores Piedade e Dadão”,
afirmou Adelina José Baia.
Um grupo de investigadores
abandonou o local já no Toyota Land Cruiser que Domingos dos Santos José
conduzia e, tal como o motorista, a viatura também desapareceu. A família
desconhece o proprietário da viatura e este nunca tentou entrar em contacto com
a família após o incidente.
O Baile do Encobrimento
Apesar da intensidade do
tiroteio, as esquadras circunvizinhas, da Casa Branca e do Mapess, nunca
enviaram efectivos ao local para averiguarem a situação.
No mesmo dia, a família
dirigiu-se à 40.ª Esquadra, situada junto ao mercado do Kikolo, para inquirir
acerca do paradeiro do Domingos dos Santos José. A referida unidade afirmou
desconhecer a operação, segundo os familiares da vítima. Na esquadra da Rua do
Combweça, na mesma comuna, o piquete encaminhou a família para a esquadra
situada no bairro do Bom Pastor.
O oficial de dia, identificado
apenas por Abel, tranquilizou a família, no dia seguinte, na unidade do Bom
Pastor. “Ele disse-nos ‘não se preocupem, foram os nossos colegas que o
prenderam. Ele está sob controlo da investigação. Voltem amanhã às 8h00’”,
relata Adelina Baia.
Diante da insistência da mãe
em saber informações sobre o paradeiro do filho, de acordo com o depoimento de
Adelina Baia, o oficial apresentou a primeira justificação sobre o caso. “O
oficial de dia informou que o meu irmão tem problemas pessoais com o chefe da
investigação criminal [Tony Barros] e que é gatuno.”
“A minha mãe respondeu que se
o meu irmão tinha problemas e se era gatuno, cabia à polícia explicar qual era
o problema, o que ele tinha roubado e qual era o seu paradeiro. Ela disse aos
polícias que os gatunos também tinham direitos e eles correram connosco”,
afirmou Adelina Baia.
No dia seguinte, a 11 de
Fevereiro, a família deslocou-se novamente à esquadra do Bom Pastor e foi
encaminhada para o Comando Municipal da Polícia Nacional, em Cacuaco. “O
piquete do comando informou-nos que [esta instituição] não tinha conhecimento
da operação”, refere a irmã do desaparecido.
Frustrado, José Baia, pai de
Domingos, explica que a sua família tem estado a contactar múltiplas entidades
policiais e procuradores sem sucesso. “Já fomos à investigação criminal do
município [comando], à Procuradoria-Geral da República junto da DNIC [Direcção
Nacional de Investigação Criminal], já fomos à DPIC [Direcção Provincial de
Investigação Criminal], à DNIC nacional, até ao Comando-Geral da Polícia
Nacional”, desabafa.
José Baia revela ter recebido
garantias pessoais por parte do representante do procurador-geral da República
junto da SMIC, João António, sobre o paradeiro de Domingos dos Santos José.
“Ele disse-me ‘o seu filho não está morto, vai aparecer depois de seis, oito ou
dez meses’”.
“Eu quero o meu filho de
volta, a polícia sabe onde ele está”, apela José Baia. “Quem está com o
meu filho é mesmo a polícia de investigação criminal.”
José Baia levanta-se do sofá,
puxa a camisola para cima e mostra o seu corpo cicatrizado, tracejado por
quatro operações. Durante anos foi guerrilheiro da FNLA, na luta pela
libertação nacional, e logo após a independência ingressou nas extintas FAPLA.
Esteve sempre em missões de combate, até ser apanhado numa emboscada.
Pergunta-se a si mesmo: “Lutei para isto, para um país onde a polícia rapta
cidadãos?”
“Se mataram o meu filho devem
mostrar onde ele foi enterrado ou a casa mortuária onde o meteram. Eu só quero
saber a verdade”, afirma o pai.
José Baia vai mais longe e
recorda o discurso recente do chefe de Estado José Eduardo dos Santos. “O presidente
disse que o seu governo não tem cultura de assassinatos. A acção de rapto e
desaparecimento do meu filho não foi um acto da polícia? A polícia não é do
governo?”
A 2 de Abril de 2013, a mãe de
Domingos dos Santos José, Maria Bebiana (que assina como Bibiana Makanua),
endereçou uma exposição ao inspector-geral da Polícia Nacional sobre o rapto do
seu filho. Nunca obteve resposta formal.
No entanto, através de várias
idas ao Comando-Geral da Polícia Nacional, Adelina Baia teve a oportunidade, em
Setembro passado, de estar presente num encontro directo com o investigador
Tony Barros.
“Houve uma acareação entre mim
e o Tony Barros lá no comando-geral, no gabinete de um oficial da
inspecção-geral, que se identificou apenas como Vaz”, disse Adelina Baia.
No encontro, “eu testemunhei
ter visto pessoalmente o Tony Barros no local, a comandar a operação a partir
do carro dele. A viatura tem uma pala atrás com as iniciais do nome dele, T.B.
Ele negou e assunto ficou assim”, revela.
Desde Setembro passado, Maka
Angola tem acompanhado os passos da família na sua tentativa de contactos junto
do Comando-Geral da Polícia Nacional, onde o conselho dado foi que se
escrevesse uma petição ao ministro do Interior.
No Comando Municipal da Polícia
Nacional, em Cacuaco, ultimamente as entidades relevantes têm-se manifestado
indisponíveis para receber a família, com a justificação de que se encontram
“reunidos”. Em Dezembro, evocaram a quadra festiva.
Maka Angola enviou, com vários
dias de antecedência, este texto (ainda com alguns parágrafos por concluir) ao
gabinete de comunicação e imagem do Comando-Geral da Polícia Nacional, de modo
a obter a versão oficial deste órgão. Tão-logo seja recebida, Maka Angola
certamente a publicará.
Antecedentes
Há um antecedente conhecido
entre o desaparecido e o investigador Tony Barros. Trata-se de um assunto
relacionado com uma viatura Volkswagen Golf 4, pertencente ao primeiro.
A 31 de Março de 2010, a SMIC
de Cacuaco apreendeu a referida viatura na sequência de um processo criminal
que resultou na condenação de Domingos dos Santos José a um ano e nove meses de
cadeia.
O jovem cumpriu pena por
desvio de um atrelado de camião da empresa 5M, para a qual trabalhava como
motorista.
Posto em liberdade a 5 de
Janeiro de 2012, o ex-presidiário tentou recuperar a sua viatura, que não
constava do processo em tribunal que o levou à condenação, segundo documentos
obtidos por Maka Angola.
Aqui se estabeleceu a única
relação de animosidade entre o então chefe da investigação criminal de Cacuaco,
Tony Barros, e Domingos dos Santos José.
“O investigador não queria
entregar o carro. O meu irmão obteve um documento do tribunal e outro da DNIC
para receber a sua viatura, mas nada. Estavam assim há quase um ano”, explica
Adelina Baia.
A 8 de Fevereiro, Domingos dos
Santos José deslocou-se, mais uma vez, à SMIC de Cacuaco onde, segundo
depoimento da família, conversou com Tony Barros.
De acordo com Adelina Baia,
“finalmente, disseram-lhe [ao irmão] para ir levantar a viatura na
segunda-feira [11 de Fevereiro de 2013]. Ele nunca mais voltou à investigação
criminal porque foi raptado no sábado [9 de Fevereiro de 2013]”.
“Depois de o miúdo ter sido
raptado, o procurador João António disse-me para levar o Volkswagen para casa,
com ou sem documentos. Respondi negativamente, porque seria aceitar a sentença
para matarem o meu filho. Disse que, quando o libertarem, ele próprio poderá ir
buscar o seu carro”, desabafa o pai do desaparecido.
Vigilância, Vigilância
Durante o trabalho de recolha
de informações no local do rapto, tanto o autor como o jornalista Alexandre
Solombe mereceram acompanhamento indiscreto por parte de agentes que se faziam
transportar em duas viaturas: um Hyundai I20, castanho metalizado, e um Toyota
Prado, azul escuro, cujas matrículas foram devidamente anotadas por jovens
locais.
Título, Imagem, Vídeo e Texto:
Rafael Marques de Morais, Maka Angola, 12-01-2014
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