Rafael Marques de Morais
Após cerca de um ano de
instrução preparatória, ontem, finalmente, tomei conhecimento formal da
acusação que pende contra mim, movida por sete generais e duas empresas.
Segundo a Direcção Nacional de
Investigação e Acção Penal (DNIAP), os generais Manuel Hélder Vieira Dias
“Kopelipa”, Carlos Hendrick Vaal da Silva, Adriano Makevela Mackenzie, João
Baptista de Matos, Armando da Cruz Neto, António Faceira e Luís Faceira
processaram-me por denúncia caluniosa. As empresas Sociedade Mineira do Cuango
e ITM-Mining também o fizeram.
Em causa está a queixa por mim
apresentada a 14 de Novembro de 2011, junto da Procuradoria-Geral da República
(PGR), contra os sócios da Sociedade Lumanhe – Extracção Mineira, Importação e
Exportação, Lda.; os gestores e representantes dos sócios da ITM-Mining, Ltd.;
os sócios da empresa privada de segurança Teleservice, assim como contra o
director-geral da Teleservice, Valentim Muacheleca.
Após o arquivamento da
queixa-crime pela Procuradoria-Geral da República, a 18 de Junho de 2013, ao
serem notificados da decisão, segundo o Ministério Público, os generais e seus
sócios privados avançaram então, em Janeiro de 2013, com a actual queixa por
denúncia caluniosa.
Por certo, o tribunal é o
melhor foro para abordar publicamente a violação sistemática dos direitos
humanos nas Lundas, independentemente da condição em que nos apresentamos,
entre arguidos ou entre queixosos.
A esse propósito, cumprirei
com uma garantia que havia dado a várias vítimas: “chegaremos a tribunal”. Há
entusiasmo bastante, porque será a celebração de 10 anos de dedicação à causa
dos direitos humanos naquela região.
O Esclarecimento do Advogado
A 13 de Janeiro de 2014 ao
tomar conhecimento da tramitação das queixas-crime contra mim para o Tribunal
Provincial de Luanda, proferi declarações públicas sobre o que considerei ser o
absurdo da justiça angolana.
Denunciei então o facto de não
ter tido acesso ao processo e de desconhecer os “termos e as razões por que os
queixosos se sentem caluniados e difamados”.
O meu advogado, Luís
Nascimento, enviou um documento à DNIAP, a 27 de Janeiro, informando que as
minhas declarações apenas foram possíveis em virtude de ele não ter podido
dar-me a conhecer o teor da resposta da DNIAP à minha reclamação.
A DNIAP finalmente revelou o
conteúdo das queixas-crime contra mim, em correspondência datada de 27 de
Dezembro de 2013. Desse documento tive apenas conhecimento ontem.
Um outro documento, mais
sucinto, sobre a tramitação do processo para o Tribunal Provincial de Luanda
foi expedido pela DNIAP com data de 30 de Dezembro de 2013, mas entregue ao
advogado apenas a 13 de Janeiro, tendo eu recebido cópia no mesmo dia. Esse
documento apenas informa que os nove processos foram remetidos para tribunal,
sem revelar a causa ou os termos das queixas.
PGR: Informações e Desinformações
O entusiasmo pela luta pelos
direitos humanos nas Lundas leva-nos a exigir seriedade por parte das entidades
de direito, sobretudo da Procuradoria-Geral da República, representada pela
Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal.
A 21 de Janeiro de 2013, a PGR
emitiu um comunicado de imprensa em resposta a uma falsa notícia plantada no
semanário O Continente, a 18 de Janeiro de 2013, segundo a qual a PGR deu
seguimento ao caso Diamantes de Sangue, convocou-me e a testemunhas para o
efeito.
No dia seguinte, o único
diário do país e órgão de propaganda do governo, o Jornal de Angola, publicou
uma notícia sobre o assunto intitulada “PGR trava manipulação”. Na matéria de
apoio ao comunicado da PGR, o jornal afirmou taxativamente que “Rafael Marques
sabe, há mais de meio ano, que a sua queixa-crime foi arquivada por falta de
provas. E conhece os fundamentos que levaram ao arquivamento. Também sabe quais
são as consequências de denúncias caluniosas.”
A 23 de Janeiro de 2013, a PGR
publicou, no Jornal de Angola, o relatório final do inquérito preliminar (Proc.
nº 4/12-INQ.) sobre a queixa por mim apresentada em 2011. Alegadamente, a
inusitada medida serviu para repor a verdade sobre a falsa notícia do
Continente.
A PGR não se dignou a repor a
verdade sobre a mentira relativa ao meu conhecimento sobre o processo de
arquivamento. A PGR informou-me apenas da decisão de arquivamento a 20 de
Novembro de 2012, apesar de na notificação de despacho constar a data de 22 de
Junho de 2012. Informar uma parte atempadamente e a outra, apenas passados
cinco meses, sobre o mesmo processo legal que os opõe, dispensa comentários.
Nessa altura, as queixas já
tinham sido apresentadas pelos generais e associados.
Em notícia publicada no
semanário Novo Jornal (Edição nº 266), de 22 de Fevereiro de 2013, sob o título
“Rafael Marques Processado por Difamação, em Angola” (pág. 13), a jornalista
Aoaní D’Alva revelou ter tido acesso à queixa-crime apresentada pela ITM-Mining.
Pela ITM Mining apresentaram
queixa o português Renato Hermínio Teixeira, o britânico Andrew John Smith e o
angolano Sérgio Eduardo Monteiro da Costa. Segundo o Novo Jornal, o conteúdo da
queixa, na altura por difamação, passava pelo seguinte:
“Acresce que RM (Rafael
Marques), no seu Livro, escamoteia completamente, ou distorce grosseiramente, a
ocorrência de inúmeros actos de violência perpetrados pelos garimpeiros contra
as forças de segurança da Empresa, ou entre garimpeiros entre si, na disputa
dos frutos da sua actividade clandestina ilegal, e ainda os acidentes trágicos
que amiúde se verificam, com desabamentos e afogamentos nos buracos abertos
pelos próprios garimpeiros, com técnicas artesanais e sem quaisquer condições
de segurança.”
Ainda de acordo com a matéria
do jornal, “os queixosos são representados pelo advogado Fernando de Oliveira e
o processo é intentado apenas pela ITM e pelos seus três administradores
visados no livro e é diligenciado apenas contra Rafael Marques”.
Nem a Direcção Nacional de
Investigação Criminal (DNIC), nem a Procuradoria-Geral da República desmentiram
a matéria do Novo Jornal. A avaliar pelo precedente estabelecido pela PGR, ao
ter desmentido a notícia do Continente, que não tinha “pés nem cabeça”,
deduz-se que considerasse verdadeiras as afirmações do Novo Jornal. A ITM
Mining e o seu advogado também se mantiveram silenciosos face à divulgação da
sua queixa pelo Novo Jornal, segundo o qual os conteúdos dessa queixa incidiam
sobre difamação.
A 3 de Abril fui depor pela
primeira vez, no Departamento de Combate ao Crime Organizado, da DNIC, sobre o
referido caso. Para o efeito, fui convocado por telefone a 1 de Abril para ir
buscar um aviso-notificação no referido departamento, porque este estava sem
viatura para fazer a entrega do mesmo. No local, fui imediatamente interrogado
sob coacção e constituído arguido, sem que tivesse sido informado sobre o
conteúdo da suspeita que pesava sobre mim. Fiquei apenas a saber,
informalmente, que estava a ser processado por difamação.
Durante o meu interrogatório,
a 27 de Julho passado, procurei saber, repetidas vezes, sobre os termos das
acusações que pendiam contra mim. Mais uma vez, sem ter tido acesso a qualquer
documento formal, recebi apenas a informação de que se tratava de queixas por
difamação, por causa do conteúdo do livro Diamantes de Sangue: Tortura e
Corrupção em Angola.
Os generais são sócios da
Lumanhe, com quotas iguais. Esta, por sua vez, detém 21 por cento das acções da
Sociedade Mineira do Cuango (SMC), exploradora de diamantes nos municípios do
Cuango e de Xá-Muteba, na província da Lunda-Norte.
De acordo com o contrato de
exploração da concessão diamantífera, a Lumanhe é responsável, ao nível da SMC,
por assegurar a relação “com a comunidade local, contribuindo para a
estabilidade social e o desenvolvimento harmonioso do Projecto na Área de
Contrato” e assume a gestão de logística e segurança.
Todos os generais, com
excepção de Kopelipa, são sócios da Teleservice, que, até Março do ano passado,
prestou serviços de segurança à concessionária SMC.
Na minha queixa referi que,
desde 2004, tenho realizado “pesquisa e monitoria sobre a violação sistemática
dos direitos humanos e actos conexos de corrupção, na região diamantífera das
Lundas, em particular nos municípios do Cuango e de Xá-Muteba”.
Com efeito, publiquei, em
Angola, quatro relatórios sobre a violação dos direitos humanos na referida
região: “Lundas: As Pedras da Morte” (2005), em co-autoria com o advogado Rui
Falcão de Campos; “Operação Kisssonde: Os Diamantes da Humilhação e da Miséria”
(2006); “Angola: A Colheita da Fome nas Áreas Diamantíferas” (2008); e, em
livro, Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola (2011).
Enquanto cidadão, agastado
pela indiferença das autoridades perante repetidas denúncias, invocando sempre
a responsabilidade dos proprietários e gestores das empresas envolvidas nos
abusos, apresentei queixa.
Descrevi “a centralidade do
consórcio que forma a SMC em actos quotidianos de tortura e, com frequência, de
homicídio que configuram a prática de crimes contra a humanidade, praticados
contra as populações de garimpeiros radicadas em ambos os municípios”.
Solicitei às autoridades que
investigassem os denunciados por indícios de agência dos crimes de homicídio e
tortura, porquanto o Código Penal define também a autoria moral de um crime por
abuso de autoridade ou de poder.
De forma extraordinária, a PGR
concluiu, no seu relatório final de arquivamento, que as testemunhas por mim
indicadas e ouvidas como declarantes limitaram-se “a repetir o que já teriam
dito ao jornalista e que também consta do seu livro não apresentando, por
conseguinte, nenhum elemento novo para confirmar os seus depoimentos.”
Aguardo a data e a hora do meu
julgamento, preparado como sempre estive para levar este caso até às últimas
consequências.
Título, Imagem e Foto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola, 01-02-2014
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