Alberto Gonçalves
Vou respeitar um minuto de silêncio para
que o leitor controle o pranto e enxugue as lágrimas. Já está? Tentemos
prosseguir. Na segunda-feira, a dona Isabel surgiu no noticiário da TVI a
exigir a obrigação de as empresas organizarem “seminários sobre assédio
laboral”
Elie Wiesel, que morreu há
dias, sobreviveu ao Holocausto e tornou-se um dos seus mais conhecidos
divulgadores. Podemos discutir se Noite,
livro de 1958, é uma grande obra literária. É indiscutivelmente um testemunho
brutal da vida, se disso se tratava, em Auschwitz e em Buchenwald. Só não é
único porque, felizmente, muitas vítimas do nazismo escaparam para contar a sua
infeliz história, criando um subgénero que pelo menos um crítico designou por “indústria
do hocausto”. Para inúmeros anti-semitas e self-hating jews, lembrar o horror é
um golpe para encher páginas e ganhar dinheiro. “Denunciar” o golpe, e com isso
encher páginas e ganhar dinheiro, é que é um gesto nobre.
Se a extrema desumanidade da “solução final” é para desvalorizar e
esquecer, ignoro que tipo de acontecimentos traumáticos estes vigilantes julgam
digno de preencher um volume de memórias. Talvez o terrível bullying entre
crianças. Ou, valha-nos Deus, o crucifixo na sala de aula. Ou, cataclismo dos
cataclismos, o assédio sexual no trabalho.
À primeira vista, a deputada
Isabel Moreira [foto], que partilha com Wiesel a tatuagem no braço, não passou
por atrocidades comparáveis. Aliás, o partido que representa encontra-se
tacitamente coligado com um partido assumidamente comunista, cujos regimes se
especializaram em campos de concentração, e com outro assumidamente trotskista,
cujo mentor ajudou a inventar os campos de concentração modernos. Mas que
importam os detalhes? Os queixumes do Gulag ou das câmaras de gás são para
meninos. A trágica verdade é que a filha de Adriano Moreira, e emérita
activista pela Palestina, sofreu assédio quando, menina e moça, iniciava a
carreira num escritório de advogados.
Vou respeitar um minuto de
silêncio para que o leitor controle o pranto e enxugue as lágrimas. Já está?
Tentemos prosseguir. Na segunda-feira, a dona Isabel surgiu no noticiário da
TVI a exigir (as almas sensíveis exigem imenso) a obrigação (as almas sensíveis
obrigam imenso) de as empresas organizarem “seminários sobre assédio laboral”.
E foi aí que, enquanto explicava a necessidade da lei (as almas sensíveis
legislam imenso), confessou, quase contrariada, o drama pessoal: “(A coisa)
chegou ao ponto de, para mim, ser aflitivo ir trabalhar, aflitivo ser chamada
para trabalhar a horas que não era suposto. (…) Ao fim de meses de desgaste
(…), acabei por ganhar coragem de dizer a quem de direito e resolver a
situação.”
Até sinto um nó na garganta.
Como é possível uma pessoa aguentar tamanha violência? Como é possível uma
pessoa achar “aflitivo” trabalhar? Como é possível uma pessoa ser chamada a
trabalhar a horas “que não é suposto” (sic)? Como é possível uma pessoa pôr
termo a este desmesurado suplício? Pelos vistos, dizendo “a quem de direito” e
pronto. Porém, isso implica possuir a “coragem” da dona Isabel, benesse que não
coube a todos. Se os prisioneiros não fossem medricas e fizessem as queixinhas
adequadas, o extermínio dos judeus nunca teria acontecido.
Só não espero que dona Isabel
converta as suas feridas para livro na medida em que follheei um “romance” (?)
dela e é escusado alargar a tortura à língua. Mas, a bem da memória e do
futuro, é urgente que a senhora percorra empresas a reivindicar uma sociedade que
respeite as mulheres. A título de modelo, a senhora pode citar a sua amada
Palestina.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, nº 636, de 7
a 13 de julho de 2016
Digitação: JP
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-