José Manuel Fernandes
É o paradoxo dos dias que correm: cá dentro
há foguetório com a execução orçamental, lá fora alerta-se para a falta de
crescimento e de reformas. Nós fazemos orelhas moucas, pois nunca aprendemos
nada
Gozem a vida enquanto podem.
Amanhã logo se vê.
Este não é conselho que gente
avisada dê, muito menos um conselho que passe como mensagem de um governo
responsável, mas é assim que estamos. E o país deixou-se contagiar, embalado na
ilusão. Sim, porque é na ilusão que vivemos.
Esta semana a OCDE esteve em
Lisboa a apresentar o seu relatório sobre Portugal, um documento cheio de
avisos e recados. Dele ressaltavam duas preocupações: a falta de crescimento e,
na origem desta, a falta de investimento. Nada que nos surpreenda, pois sabemos
que em 2016 o crescimento ficará abaixo dos 1,6% registados em 2015, e agora a
organização prevê que o mesmo suceda em 2017 e 2018. Tudo isto com o
investimento 30% abaixo do registado em… 2005.
Mas o que preocupou Mário
Centeno ao conhecer o relatório? Dizer que “todas as instituições
internacionais falharam nas suas previsões” relativas a Portugal. Como? Será
que ouvimos bem? É que há um ano, quando elaborou o seu primeiro Orçamento do
Estado, O mesmo Centeno previu um crescimento de 1,8%, e este deverá ficar-se
pelos 1,2% ou 1,3%. Já a OCDE previa na altura um crescimento de 1,6% (depois
corrigiu em baixa para 1,2%), o FMI de 1,4% e a Comissão Europeia de 1,6%. O
que significa que todas essas instituições se enganaram – mas todas se
enganaram menos do que o Governo e o próprio Mário Centeno.
Como é possível então que o
ministro das Finanças tenha dito o que disse sem se engasgar? Porque ele não
quer falar de crescimento (e ainda menos de investimento): ele, tal como
António Costa, só quer falar de défice. De repente os políticos que andaram com
o “há vida para além do défice” na boca transformaram o défice no alfa e ómega
que determina o seu sucesso ou insucesso. Só que infelizmente o défice de que falam
é uma espécie de mentira piedosa para a Europa consumir e o pacóvio engolir.
Eu sei: o número de que todos
falam é 2,3%. “O menor défice da democracia portuguesa”, repetem os ministros a
todo o momento e, depois de conhecidos os números mais recentes, é bem provável
que o número seja mesmo esse. O problema é como ele foi conseguido.
A análise mais recente da
UTAO, um organismo conhecido pela sua independência e competência técnica,
fornece algumas explicações interessantes para como se chegou aqui.
Primeiro ponto: o Governo cortou de forma brutal no investimento público. Menos 955 milhões de euros do
que o previsto no seu próprio Orçamento, ou seja, 955 milhões de “plano B” que
levaram a que o investimento público ficasse 433 milhões de euros abaixo do
realizado em 2015 na vigência da híper-super-radical-liberal anterior maioria
que estava a “destruir” os serviços públicos.
E onde foi que houve menos
investimento? Vale a pena tomar nota: menos 29,8% na Saúde, menos 65,8% no
ensino básico e secundário, menos 50,8% no Metro de Lisboa e menos 66,6% no do
Porto. Estes cortes foram tão acentuados que não podemos falar apenas de ter
deixado de se investir no futuro – deixou-se de gastar o mínimo para manter
alguns sistemas vitais a funcionar. Já em tempos expliquei como a situação no
Metro de Lisboa me levava a ter saudades do tempo das greves constantes, mas o que acaba de se passar na Escola Alexandre Herculano no Porto é do domínio do surreal. Como se sabe, a
escola teve de fechar por uns dias porque chovia nas salas de aula, sendo que
havia seis milhões de euros de fundos comunitários para realizar as obras de
requalificação. Porque não foram estes usados? Porque o governo pretendia que
fosse a Câmara do Porto a colocar a verba remanescente, e esta naturalmente
recusou-se, pois o edifício não lhe pertence. E Governo ficou-se nas covas, por
causa dos cortes no investimento.
Ao mesmo tempo que colocava o
investimento público no nível mais baixo (em percentagem do PIB) dos últimos 60
anos – um feito deveras extraordinário para um governo de esquerda –, o Governo
conseguia o seu “milagre orçamental” com recurso a mais alguns estratagemas. O mais conhecido foi o “perdão fiscal”, o PERES, que
terá permitido encaixar 551 milhões de euros. Menos conhecida foi a operação de
reavaliação de activos que terá rendido, em sede de IRC, mais uns 100 milhões.
Mesmo com estas duas ajuda a receita fiscal ficou bem abaixo do que estava
previsto, pois quase todos os restantes impostos sofreram com o facto de o
crescimento económico ter ficado bem aquém (700 milhões aquém) das previsões de
Mário Centeno.
Mas não ficámos por aqui,
sendo que a outra medida de que mais se falou foram as “cativações”, que terão
valido 445 milhões e que ninguém sabe exactamente que sectores e departamentos
afectaram. Foram um “plano b” sem o ser, um “orçamento rectificativo” não
assumido e, por isso, uma prática orçamental menos séria e menos transparente.
Aqui e além vamos sabendo de fornecedores do Estado a adiar facturas para 2017,
de serviços públicos sem meios para funcionarem, de organismos a fecharem as
portas ao público, de hospitais sem poderem comprar os medicamentos de que
necessitariam ou de concursos para bolseiros de investigação que derraparam de
2016 para 2017, mas a opacidade do exercício orçamental só é superada pelo silêncio
ensurdecedor dos parceiros da troika, que agora engolem tudo, ou quase, sem uma
lamúria ou um protesto. Basta recordar que quase não tugiram nem mugiram mesmo quando se soube, pelo Observador, que o secretário de Estado da Saúde assinara um
despacho a dar instruções aos hospitais para limitarem as reparações de
equipamentos médicos e não renovarem os stocks de medicamentos.
Medidas como estas permitiram
chegar ao fim do ano com um número “para a Europa ver”, mas agravando pelo
caminho a factura a pagar pelas gerações futuras. Isso sucedeu quer por a
dívida ter continuado a aumentar (mais 9,5 mil milhões de euros em 2016), quer
por as despesas fixas da administração pública terem aumentado mais do que o
previsto por via das famosas “reposições” e “reversões”. Foi o caso das
despesas com pessoal, que excederam o orçamentado em 1,2%, ou seja mais uns 225
milhões de euros. Repuseram-se salários, regressou-se às 35 horas, não se
reformaram tantos funcionários quantos se esperava, houve necessidade de
contratar mais trabalhadores e, como estamos a falar da principal clientela da
“geringonça”, agora só se fala de integrar os chamados “precários” (de resto quem
ouve falar os partidos da “geringonça” arrisca-se a ficar com a ideia de que em
Portugal só há funcionários públicos ou empresas públicas, tal a fixação na
defesa dos seus interesses corporativos).
Depois de todos estes números,
e para não estar a incluir quadros, restará dizer que se somamos todas as
parcelas que entraram para o nunca assumido “plano b” (corte no investimento,
PERES, cativações e reavaliação de activos) chegamos a cerca de dois mil
milhões de euros. Ou seja, sem essas medidas ora extraordinárias, ora difíceis
de prolongar no tempo indefinidamente sem perturbações ainda mais graves dos
serviços públicos, o défice de 2016 teria ficado em 3,4% e não nos 2,3%
anunciados. Teria piorado em vez de melhorar.
Desgraçadamente já sabemos
que, para consumo político interno, o que vai contar é o número mágico de 2,3%.
Em Bruxelas também não quererão ouvir falar de nenhum outro, mesmo sabendo por
que caminhos se chegou a este resultado. A Comissão, já fomos disso avisados, é
“assumidamente política”, e a política que neste momento conta é a de não fazer ondas.
O problema, o nosso grande
problema, é que o mundo e a economia não se faz apenas de políticos e de
eurocratas, pelo que há quem continue a olhar para Portugal com a desconfiança
própria dos que sabem que não estamos a ir pelo melhor caminho. Ainda agora a Fitch, no relatório em que manteve no “lixo” a dívida portuguesa, escrevia
que “até ao momento, o Sr. Costa tem um bom historial a gerir as diferenças
entre os partidos, o que assegura estabilidade política. Contudo, o problema é
que há pouca capacidade para aplicar reformas estruturais ambiciosas em outras
áreas da política económica”. Também a OCDE nos
veio dizer que as reformas estruturais feitas desde 2011 “sustentaram a
recuperação gradual da economia portuguesa” mas que agora o ímpeto reformista
esfumou-se. E por fim outra agência de notação, a Moody’s,
já nota uma “pequena deterioração” na vontade de ter as contas públicas em
ordem.
Isto significa que, para os
que nos olham sem filtros políticos, as contas não estão bem – apenas parecem
bem. É por isso que, nos mercados da dívida, os juros continuam a subir. Se
Portugal tivesse mantido as taxas de juro da Primavera/Verão de 2015, os
empréstimos realizados em 2016 custariam menos 200 milhões de euros em juros
todos os anos (ver aqui as
contas). Mais: se Portugal tivesse mantido esse nível de juros baixos teria
podido trocar dívida mais cara por dívida mais barata (por exemplo: teria
amortizado num valor superior o empréstimo do FMI, como estava previsto pelo
anterior Governo), o que significa que teria “reestruturado” de forma benévola
uma parte da dívida, com benefícios óbvios no médio e longo prazo.
Mas isso que interessa?
Aparentemente nada. Enquanto o Banco Central Europeu for mantendo os juros num
nível comportável continuamos naquele intervalo enquanto o pau vai e vem e
folgam as costas.
E é nisto que estamos.
Enganamos e enganamo-nos com números que apenas servem para fingir que os
problemas estão resolvidos quando, afinal, apenas se varreu o lixo para debaixo
do tapete. E se a “descompressão” lá acabou por levar a alguma retoma do
consumo, isso foi feito à custa de níveis de poupança historicamente baixos.
O país, ou uma parte dele,
parece estar como Costa: o que conta é viver mais um dia. 2016 já passou, em 2017
não deve ainda haver problemas de financiamento do Estado, em 2018 logo se vê.
Até lá, repito, não nos fustiguem com essa chatice dos números e com essa coisa
da realidade, que nem queremos ouvir. Só queremos é dar descanso às costas.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
7-2-2017
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