Maria João Marques
Em boa verdade a crónica de Boaventura
Sousa Santos não é só sobre a Venezuela. Além do enlevo pelo excelente regime
chavista, o sociólogo de esquerda também delira com aquilo que chama de
democracia.
É tempo de férias, pelo que
decidi fazer uma recomendação de leitura. Levezinha e humorística, que não
queremos negrumes a ensombrar a espera entre os mergulhos. Ah, pensa agora o
caro leitor, vem aí o livro preferido da série Jeeves e seu empregador Bertie
Wooster, de P. G. Wodehouse. Está enganado, caro leitor. Recomendo algo mais
hilariante: a última crônica de Boaventura Sousa Santos sobre a
Venezuela.
Visto tratar-se de obra
seminal – como todas as do eminente acadêmico – vou tomar a liberdade de citar
algumas frases, para poder fornecer aos leitores uma amostra da intensa e
variada panóplia de emoções (e risotas) que o esperam se ler o texto inteiro,
seguidas de uma hermenêutica da minha autoria.
Em boa verdade a crônica de
BSS não é só sobre a Venezuela. Além do enlevo pelo excelente regime chavista,
o sociólogo de esquerda também delira com aquilo que chama de democracia. Que,
desconfiamos, à boa maneira dos estalinistas antes da queda do muro de Berlim,
tem mais a ver com suprimir a liberdade dos desconchavados cidadãos de
decidirem não viver sob um regime proto-comunista do que com eleições. BSS
gosta da verdadeira democracia, não da sua corrupção burguesa que implica
aquela maçada dos votos e dos contra poderes.
Por alguma razão que não
vislumbro, Boaventura Sousa Santos esqueceu-se de referir a maravilha econômica
que a família Chávez, benza-os Deus, por meios inteiramente
legítimos de recompensa à bondade de tal figura em governar o país, lhe viu
acontecer. Ou o ascetismo da família de Maduro. Os enteados do grande líder, certamente numa viagem com
grande sacrifício pessoal e totalmente em prol do bem-estar dos venezuelanos
obrigados às filas de racionamento de comida, hospedaram-se no Ritz de Madrid,
fizeram compras nas lojas da Calle Serrano e Ortega Y Gasset, transportaram-se
de carro com motorista e, em poucos dias, espatifaram dezenas de milhar de
euros. Suponho que estas historietas terão ficado de fora apenas por falta de
espaço.
Por mistérios insondáveis,
Boaventura também não aludiu à violação de direitos humanos, de que prender opositores políticos pela noite em suas casas pela polícia secreta é
só o último episódio. Afinal, se estas mariolices vierem de um governo de
esquerda, tal nada retira à democracia do regime que assim se conduz. BSS,
inexplicavelmente, nem sequer uma linha dedicou a esse símbolo maior das
democracias (piscar o olho) sul-americanas: o fato de treino, que Filipa
Guimarães aqui disseca.
Mas houve, claro, caracteres
para elencar as maravilhas econômicas e sociais conseguidas pelo
estratosfericamente bom Chávez. Em todo o caso, o sociólogo de esquerda lá
concede que aqui e ali algo corre mal.
‘A morte prematura de Hugo
Chávez em 2013 e a queda do preço do petróleo em 2014 causou um abalo profundo
nos processos de transformação social então em curso. A liderança carismática
de Chávez não tinha sucessor’, escreve. Ficamos sem saber por que razão a queda
do preço do petróleo interrompeu o maravilhoso progresso social – daqueles
progressos de que fazem parte encerramentos de órgãos de comunicação social,
bem entendido. Descobrimos, ainda, que é um problema o líder carismático morrer
sem sucessor. Onde já se viu dar oportunidade aos rústicos dos cidadãos
elegerem o líder que lhes aprouver? No máximo, apresenta-se o herdeiro e
permite-se generosamente que a populaça finja que, em eleições, ratificou a
escolha que lhe foi imposta.
‘A situação foi-se
deteriorando até que, em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na
Assembleia Nacional.’ De facto chegámos ao fim da linha numa democracia quando
a oposição mais chegada à direita tem a lata de vencer eleições. Gente ruim que
não aceita ficar a acenar beatificamente a cada decisão do governo de esquerda,
comportamento que qualquer pessoa sensata sabe ser o fim último de uma oposição
de direita. E a malta de esquerda até está a ser estupendamente generosa,
permitindo desta forma à direita a ilusão de que existe. Linhas à frente,
Boaventura Sousa Santos justifica as pacíficas eleições do passado fim de
semana com a necessidade de ‘ultrapassar a obstrução da Assembleia Nacional
dominada pela oposição’, essa irritante inconveniência.
Mas não pense injustamente o
leitor que BSS está desconhecedor da escassez de bens essenciais na Venezuela,
ou da inflação galopante ou de mais um ou dois contratempos. Não. O sociólogo
refere explicitamente: ‘a confrontação institucional agravou-se e foi
progressivamente alastrando para a rua, alimentada também pela grave crise
econômica e de abastecimentos que, entretanto, explodiu’. A grave crise
econômica e a crise de abastecimentos que, entretanto, explodiu, concluirá o
leitor que apenas se informa lendo Boaventura Sousa Santos, foi uma espécie
de downburst na economia venezuelana. É que depois de
nacionalizarem empresas, ameaçarem capitalistas, imporem preços máximos,
imprimirem dinheiro como se não houvesse amanhã, entre muitas outras bestiais
decisões socialistas, depois disto ninguém, absolutamente ninguém, que já tenha
lido aí meio compêndio de economia previa escassez e crise econômica. Como tão
experimentada receita para a fome popular, quer dizer, para o sucesso
democrático pôde ser tão desvirtuada? Inclino-me para extraterrestres que
sabotaram o tecido produtivo venezuelano.
É que os extraterrestres, tal
como a comunicação social mundial, são de direita. Boaventura Sousa Santos está
escandalizado com os ‘media globais’, que ‘já tomaram partido pela oposição’.
Devem ser os mesmos valdevinos que nos anos oitenta vertiam simpatia pelo Solidariedade
de Lech Walesa contra o governo estalinista da Polónia. Os media não sabem
respeitar a Venezuela e as democracias. Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
2-8-2017
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