Angela Marques
O funk que saía das colunas combinava com o
tema que pairava no ar: se o machismo morresse quem iria ao funeral?
O funk que saía das colunas
combinava com o tema que pairava no ar: se o machismo morresse quem iria ao
funeral? Despudorados, os meus amigos descreviam a festa a que eu tinha faltado
como a queriam recordar: para o bem e para o mal, épica. Quando a memória ficou
turva, eles sentiram o século XXI na ponta dos dedos e recorreram aos vídeos. E
os vídeos até os absolviam – olhando as provas e evitando olhar para eles, tive
de admitir: o bar aberto era o principal suspeito do assassinato público da dignidade
dos meus amigos, eu nem os podia culpar. Rindo, passámos a assuntos sérios.
Naquela noite, depois daquela
festa, contavam, a amiga de uma amiga teria tentado apanhar um táxi em Lisboa.
Sozinha, vestida de renda e vinil (a festa tinha pedido máscara, ela não tinha
pedido troco), teria demorado 40 minutos até que um taxista a deixasse entrar
no carro. Em choque, condenámos os taxistas: que teriam pensado que ela era uma
prostituta, que teriam julgado aquela prostituta, que a prostituição é um dos
últimos tabus da sexualidade (resumindo: que eles nunca se perguntariam porque
podemos vender a alma, mas não o corpo).
Só alguns dias depois é que
voltei à história daquela miúda, saída daquela festa, vestida daquela maneira.
Falei alto, recordei os pormenores dos testemunhos abonatórios. Condenei de
novo todos os taxistas que não pararam para a apanhar. Desta vez, porém, a
história não encontrou eco.
À minha frente, uma dúvida: "E se nenhum taxista parou porque a vossa amiga estava muito bêbada? A festa não tinha sido épica?" Não soube responder à pergunta. Fiquei, contudo, com uma resposta: quando o machismo morrer, vamos ter de ir todos ao funeral.
À minha frente, uma dúvida: "E se nenhum taxista parou porque a vossa amiga estava muito bêbada? A festa não tinha sido épica?" Não soube responder à pergunta. Fiquei, contudo, com uma resposta: quando o machismo morrer, vamos ter de ir todos ao funeral.
Título e Texto: Angela Marques, SÁBADO,
nº 731, de 3 a 9 de maio de 2018
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