sexta-feira, 4 de maio de 2018

[Flagrantes do quotidiano] A prostituta de ocasião

Angela Marques

O funk que saía das colunas combinava com o tema que pairava no ar: se o machismo morresse quem iria ao funeral?

O funk que saía das colunas combinava com o tema que pairava no ar: se o machismo morresse quem iria ao funeral? Despudorados, os meus amigos descreviam a festa a que eu tinha faltado como a queriam recordar: para o bem e para o mal, épica. Quando a memória ficou turva, eles sentiram o século XXI na ponta dos dedos e recorreram aos vídeos. E os vídeos até os absolviam – olhando as provas e evitando olhar para eles, tive de admitir: o bar aberto era o principal suspeito do assassinato público da dignidade dos meus amigos, eu nem os podia culpar. Rindo, passámos a assuntos sérios.

Naquela noite, depois daquela festa, contavam, a amiga de uma amiga teria tentado apanhar um táxi em Lisboa. Sozinha, vestida de renda e vinil (a festa tinha pedido máscara, ela não tinha pedido troco), teria demorado 40 minutos até que um taxista a deixasse entrar no carro. Em choque, condenámos os taxistas: que teriam pensado que ela era uma prostituta, que teriam julgado aquela prostituta, que a prostituição é um dos últimos tabus da sexualidade (resumindo: que eles nunca se perguntariam porque podemos vender a alma, mas não o corpo).

Só alguns dias depois é que voltei à história daquela miúda, saída daquela festa, vestida daquela maneira. Falei alto, recordei os pormenores dos testemunhos abonatórios. Condenei de novo todos os taxistas que não pararam para a apanhar. Desta vez, porém, a história não encontrou eco.

À minha frente, uma dúvida: "E se nenhum taxista parou porque a vossa amiga estava muito bêbada? A festa não tinha sido épica?" Não soube responder à pergunta. Fiquei, contudo, com uma resposta: quando o machismo morrer, vamos ter de ir todos ao funeral.
Título e Texto: Angela Marques, SÁBADO, nº 731, de 3 a 9 de maio de 2018

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