Ambiente ascético e duro. Tudo em madeira: paredes, teto,
piso, rústicas mesas e cadeiras. Vultos projetados contra as paredes por luz
bruxuleantes de toscas lamparinas. Quarenta e um homens livres, circunspectos,
filhos de Deus, frugais, senhores de si, enrijecidos por vida dura e crença
inabalável, determinados e cônscios do que faziam, distantes de suas raízes,
futuro incerto e imprevisto, rumo ao desconhecido, reunidos em assembleia, nada
igual nunca antes testemunhado na história da humanidade, tudo em pleno
Atlântico Norte, na principal cabine da nave Mayflower. Ali redigiram as primeiras regras de convivência de
homens livres e iguais, libertos da peia do absolutismo e submissos somente às
suas consciências e à vontade de Deus.
Era o dia 21 de novembro de 1620. Não havia preocupações
intelectuais ou filosóficas, estavam simplesmente entoando um hino à liberdade,
tomando seus destinos em suas próprias mãos; sequer suspeitavam, nem havia
como, que aquela assembleia dos livres, aquelas deliberações condoreiras, além
de inspiracionais, atravessariam os próximos séculos, até os dias atuais,
cantadas em prosa e verso e aplaudidas pelos amantes da liberdade. Ali,
justamente naquele navio e naquele momento se plantavam as raízes que
animariam, transcorrido pouco mais de século e meio, as deliberações dos Founding Fathers (Pais Fundadores) que
desaguaria na declaração de independência dos Estados Unidos da América,
finalizada pela pena candente de Thomas Jefferson.
Com esse ato fundacional os peregrinos do Mayflower, vindos da Inglaterra,
estabeleciam as regras de convivência na futura colônia a ser criada nas plagas
que, cento e cinquenta e seis anos depois, seriam proclamados os Estados Unidos
da América.
Aqueles homens estavam determinados a criar no Novo Mundo um
ideal de vida, fundar uma nova terra prometida, aquilo que veio a ser conhecido
como “Shining City upon a Hill”.
Era uma comunidade de cento e duas pessoas. Quarenta e um
homens, suas mulheres e seus filhos. Cada família tinha uma bíblia,
ferramentas, animais de pequeno porte, móveis e utensílios pessoais. Havia
ferreiros, marceneiros, carpinteiros etc. O calvinismo era a fonte inspiradora.
Consideravam-se, pelo substrato de sua crença religiosa,
pessoas eleitas por Deus. Como sinais exteriores dessa escolha divina, deveriam
agir de forma pia, dedicação à família, ao trabalho, ao semelhante, abdicação
dos excessos, concórdia na vida comunitária, além de estrita observância dos
preceitos bíblicos. A religião professada prescindia das escalas hierárquicas
do catolicismo e a palavra de Deus vinha diretamente dos preceitos bíblicos,
sem a intermediação clerical. O otimismo responsável, a retidão de conduta, o
trabalho duro e produtivo e a compaixão formavam as águas de seus banhos
lustrais, eis que tudo acontecia por vontade divina, seja o arar a terra, seja
o ato da oração.
Esse modelo é mais tarde replicado em outros núcleos
coloniais formados pelas sucessivas levas vindas da Inglaterra para
assentamento na América.
![]() |
Mayflower na Baía de Plymouth, tela de William Halsall, 1882 |
Esse caldo cultural temperou o caráter americano. Não se
vinha para a América olhando para trás. A vinda era definitiva e o escopo era
forjar uma vida nova, um futuro promissor. Os adventícios tinham de se ajustar
aos códigos de conduta eleitos pela comunidade como um todo. Assentamentos
diferentes, fixados em lugares diferentes, obedeciam, em termos gerais, aos
paradigmas já estabelecidos.
O estado nunca teve um papel preponderante na condução dos
negócios comunais. Ninguém esperava ou reivindicava um poder público provedor.
Era um ambiente libertário em que a presença do Estado era vista com
desconfiança e hostilidade.
Além disso, não havia na colônia a produção de algo que
pudesse ser exportado para a metrópole ou, via metrópole, para o resto da
Europa. Essa ausência de algo exportável em volume significativo impedia a
geração de recursos para a aquisição do que fosse produzido na Inglaterra, daí
não haver uma política impeditiva do desenvolvimento de atividades produtivas
que fossem consideradas concorrentes ao centro do poder. As colônias tinham que
viver por seus próprios meios.
Essa particularidade importantíssima ajudou a forjar e
temperar o caráter dos pioneiros, ancorando-os de forma definitiva à terra e
aos negócios gerados na colônia. Aquela predisposição a uma vida livre e
autodeterminada, aliada à consciência de que seus destinos e seus interesses se
albergavam de forma intrínseca na colônia foi a senda aberta em direção a uma
grande autonomia econômica e administrativa que desaguaria de forma irresistível
no anseio de independência cujo advento veio se consumar, em termos históricos,
em pouco tempo.
Esse caráter, esse way
of life do povo americano, continuou durante toda a sua trajetória
histórica e, ainda hoje, transcorridos séculos, faz desse notável país algo
jamais visto em toda a história da humanidade.
Agora, vem a questão. Por que eu estaria fazendo essa ode à
alma americana, que, de resto, todos sabemos que é assim? Meu propósito é
estabelecer o contraponto com o que se passa no Brasil. Todo e qualquer
problema que se discuta, seja em roda de amigos, seja na imprensa, seja nos
parlamentos, seja nos clubes de serviço, em suma, qualquer que seja a
instância, sempre e sempre se conclamará o Estado como solução, quando, na
verdade, no mais das vezes, o Estado é o problema.
Agimos sem nenhuma autonomia, queremos sempre a asa
protetora estatal, como meninos assustados em busca da proteção paterna. Falta
ao brasileiro um grito de independência, uma petição por menos governo, por
menos intervenção, por menos carga fiscal, por menos regulamentação. Ainda não
aprendemos a colocar o Estado no seu devido lugar, a entender que, em sendo um
mal necessário, quanto mais comprimido, quanto mais podado, melhor. Façam um
exame retrospectivo de todas as crises de que se lembrem e verão que não foram
forjadas pelas pessoas que trabalham duro e pagam impostos, que isso nunca gera
nem poderia gerar problemas. É sempre o Estado, impulsionado por políticos, o
fator determinante de equívocos que resultam em crises. Vejam, por exemplo, o
que se passa na atual triste quadra brasileira.
Quem tomou medidas erradas? Quem malbaratou recursos
públicos? Quem inchou a máquina administrativa? Quem estabeleceu remuneração de
cargos públicos incompatíveis com a realidade nacional? A resposta é uma só: o
Estado. Se assim é, como ele poderia ter a solução para os nossos mais cruciais
problemas? Por que o Estado tem que explorar petróleo, gerir bancos, cobrar
impostos que deixam as pessoas sem sobras suficientes para os investimentos necessários?
É mais que soada a hora de um basta a esse estado de coisas.
Está na hora de se exigir a diminuição forte da carga fiscal, a ser
implementada paulatina e inexoravelmente dentro de um razoável trato de tempo;
clamar pela desregulamentação da economia, abolir exigências de certidões
fiscais na realização de negócios privados, eliminação da contabilidade fiscal,
simplificação e desregulação ao máximo das relações trabalhistas, imposição de
limites restritos aos gastos de custeio
da máquina pública, simplificação da legislação tributária, imposição de
menores taxas e em menores números do imposto de renda; criação de sistema de
voucher para os estudantes e, pari passo, a diminuição da escola
pública, na certeza que o Estado para arcar com a educação fundamental não
preciso ser o dono da escola ou o empregador do professor; sigamos, no
particular, o exemplo do Chile e das escolas charters americanas.
Se temos que ir para a rua, marchemos sobre Brasília com uma
pauta séria de reivindicações da espécie. Enfim, arriemos em algum lugar esse
espírito de escravos de governo, essa mania de achar que no Estado está a chave
para a solução de todos os problemas nacionais, quando, em verdade, o Estado é
parte deles. Precisamos de novo grito de independência e da edição de uma nova
Lei Áurea, pois é ora de romper os grilhões. É soada a hora de entoarmos nosso
hino à liberdade, é soada a hora do grito dos inconfidentes: Libertas quae sera tamen!
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, Aventura,
E.U.A., 11-10-2018
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