quinta-feira, 18 de outubro de 2018

[Pensando alto] Um hino à liberdade

Pedro Frederico Caldas

Ambiente ascético e duro. Tudo em madeira: paredes, teto, piso, rústicas mesas e cadeiras. Vultos projetados contra as paredes por luz bruxuleantes de toscas lamparinas. Quarenta e um homens livres, circunspectos, filhos de Deus, frugais, senhores de si, enrijecidos por vida dura e crença inabalável, determinados e cônscios do que faziam, distantes de suas raízes, futuro incerto e imprevisto, rumo ao desconhecido, reunidos em assembleia, nada igual nunca antes testemunhado na história da humanidade, tudo em pleno Atlântico Norte, na principal cabine da nave Mayflower. Ali redigiram as primeiras regras de convivência de homens livres e iguais, libertos da peia do absolutismo e submissos somente às suas consciências e à vontade de Deus.

Era o dia 21 de novembro de 1620. Não havia preocupações intelectuais ou filosóficas, estavam simplesmente entoando um hino à liberdade, tomando seus destinos em suas próprias mãos; sequer suspeitavam, nem havia como, que aquela assembleia dos livres, aquelas deliberações condoreiras, além de inspiracionais, atravessariam os próximos séculos, até os dias atuais, cantadas em prosa e verso e aplaudidas pelos amantes da liberdade. Ali, justamente naquele navio e naquele momento se plantavam as raízes que animariam, transcorrido pouco mais de século e meio, as deliberações dos Founding Fathers (Pais Fundadores) que desaguaria na declaração de independência dos Estados Unidos da América, finalizada pela pena candente de Thomas Jefferson.

Com esse ato fundacional os peregrinos do Mayflower, vindos da Inglaterra, estabeleciam as regras de convivência na futura colônia a ser criada nas plagas que, cento e cinquenta e seis anos depois, seriam proclamados os Estados Unidos da América.

Aqueles homens estavam determinados a criar no Novo Mundo um ideal de vida, fundar uma nova terra prometida, aquilo que veio a ser conhecido como “Shining City upon a Hill”.

Era uma comunidade de cento e duas pessoas. Quarenta e um homens, suas mulheres e seus filhos. Cada família tinha uma bíblia, ferramentas, animais de pequeno porte, móveis e utensílios pessoais. Havia ferreiros, marceneiros, carpinteiros etc. O calvinismo era a fonte inspiradora.

Consideravam-se, pelo substrato de sua crença religiosa, pessoas eleitas por Deus. Como sinais exteriores dessa escolha divina, deveriam agir de forma pia, dedicação à família, ao trabalho, ao semelhante, abdicação dos excessos, concórdia na vida comunitária, além de estrita observância dos preceitos bíblicos. A religião professada prescindia das escalas hierárquicas do catolicismo e a palavra de Deus vinha diretamente dos preceitos bíblicos, sem a intermediação clerical. O otimismo responsável, a retidão de conduta, o trabalho duro e produtivo e a compaixão formavam as águas de seus banhos lustrais, eis que tudo acontecia por vontade divina, seja o arar a terra, seja o ato da oração.

Esse modelo é mais tarde replicado em outros núcleos coloniais formados pelas sucessivas levas vindas da Inglaterra para assentamento na América.

Mayflower na Baía de Plymouth, tela de William Halsall, 1882
O resto é história. Os Estados Unidos foram sendo formados por gente vinda não só da Inglaterra como também de outras partes da Europa. Aqueles que sonhavam com uma nova vida, que sentiam as angústias da perseguição religiosa, a vontade de superar as insuficiências materiais, ou sonhavam com um futuro promissor, arrojavam-se ao mar para tentar uma nova vida em um mundo novo.

Esse caldo cultural temperou o caráter americano. Não se vinha para a América olhando para trás. A vinda era definitiva e o escopo era forjar uma vida nova, um futuro promissor. Os adventícios tinham de se ajustar aos códigos de conduta eleitos pela comunidade como um todo. Assentamentos diferentes, fixados em lugares diferentes, obedeciam, em termos gerais, aos paradigmas já estabelecidos.

O estado nunca teve um papel preponderante na condução dos negócios comunais. Ninguém esperava ou reivindicava um poder público provedor. Era um ambiente libertário em que a presença do Estado era vista com desconfiança e hostilidade.

Além disso, não havia na colônia a produção de algo que pudesse ser exportado para a metrópole ou, via metrópole, para o resto da Europa. Essa ausência de algo exportável em volume significativo impedia a geração de recursos para a aquisição do que fosse produzido na Inglaterra, daí não haver uma política impeditiva do desenvolvimento de atividades produtivas que fossem consideradas concorrentes ao centro do poder. As colônias tinham que viver por seus próprios meios.

Essa particularidade importantíssima ajudou a forjar e temperar o caráter dos pioneiros, ancorando-os de forma definitiva à terra e aos negócios gerados na colônia. Aquela predisposição a uma vida livre e autodeterminada, aliada à consciência de que seus destinos e seus interesses se albergavam de forma intrínseca na colônia foi a senda aberta em direção a uma grande autonomia econômica e administrativa que desaguaria de forma irresistível no anseio de independência cujo advento veio se consumar, em termos históricos, em pouco tempo.

Esse caráter, esse way of life do povo americano, continuou durante toda a sua trajetória histórica e, ainda hoje, transcorridos séculos, faz desse notável país algo jamais visto em toda a história da humanidade.

Agora, vem a questão. Por que eu estaria fazendo essa ode à alma americana, que, de resto, todos sabemos que é assim? Meu propósito é estabelecer o contraponto com o que se passa no Brasil. Todo e qualquer problema que se discuta, seja em roda de amigos, seja na imprensa, seja nos parlamentos, seja nos clubes de serviço, em suma, qualquer que seja a instância, sempre e sempre se conclamará o Estado como solução, quando, na verdade, no mais das vezes, o Estado é o problema.

Agimos sem nenhuma autonomia, queremos sempre a asa protetora estatal, como meninos assustados em busca da proteção paterna. Falta ao brasileiro um grito de independência, uma petição por menos governo, por menos intervenção, por menos carga fiscal, por menos regulamentação. Ainda não aprendemos a colocar o Estado no seu devido lugar, a entender que, em sendo um mal necessário, quanto mais comprimido, quanto mais podado, melhor. Façam um exame retrospectivo de todas as crises de que se lembrem e verão que não foram forjadas pelas pessoas que trabalham duro e pagam impostos, que isso nunca gera nem poderia gerar problemas. É sempre o Estado, impulsionado por políticos, o fator determinante de equívocos que resultam em crises. Vejam, por exemplo, o que se passa na atual triste quadra brasileira.
Quem tomou medidas erradas? Quem malbaratou recursos públicos? Quem inchou a máquina administrativa? Quem estabeleceu remuneração de cargos públicos incompatíveis com a realidade nacional? A resposta é uma só: o Estado. Se assim é, como ele poderia ter a solução para os nossos mais cruciais problemas? Por que o Estado tem que explorar petróleo, gerir bancos, cobrar impostos que deixam as pessoas sem sobras suficientes para os investimentos necessários?

É mais que soada a hora de um basta a esse estado de coisas. Está na hora de se exigir a diminuição forte da carga fiscal, a ser implementada paulatina e inexoravelmente dentro de um razoável trato de tempo; clamar pela desregulamentação da economia, abolir exigências de certidões fiscais na realização de negócios privados, eliminação da contabilidade fiscal, simplificação e desregulação ao máximo das relações trabalhistas, imposição de limites restritos aos gastos de custeio  da máquina pública, simplificação da legislação tributária, imposição de menores taxas e em menores números do imposto de renda; criação de sistema de voucher para  os estudantes e, pari passo, a diminuição da escola pública, na certeza que o Estado para arcar com a educação fundamental não preciso ser o dono da escola ou o empregador do professor; sigamos, no particular, o exemplo do Chile e das escolas charters americanas.

Se temos que ir para a rua, marchemos sobre Brasília com uma pauta séria de reivindicações da espécie. Enfim, arriemos em algum lugar esse espírito de escravos de governo, essa mania de achar que no Estado está a chave para a solução de todos os problemas nacionais, quando, em verdade, o Estado é parte deles. Precisamos de novo grito de independência e da edição de uma nova Lei Áurea, pois é ora de romper os grilhões. É soada a hora de entoarmos nosso hino à liberdade, é soada a hora do grito dos inconfidentes: Libertas quae sera tamen!              
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, Aventura, E.U.A., 11-10-2018

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