Pedro Frederico Caldas
Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem, lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize – Boaventura de Souza Santos
Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem, lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize – Boaventura de Souza Santos
Primeiro de setembro do ano de
2050. Noé Trajano de Castro terminara o desjejum: dois ovos, carne de sol frita
em cubos, farofa de bacon e cebola queimada, macaxera, café preto, tudo após
coalhada de leite cru com duas colheres de sopa de rapadura moída, não sem
antes descer goela abaixo uma talagada de infusão de cachaça, folhas e raízes,
chamada “pratudo” ou “pau-de-resposta”. Debaixo de sete capas, refestelara-se
nessas iguarias, numa verdadeira ruptura de ter que comer tofu com iogurte,
leite desnatado, café adoçado com planta natural e hambúrguer de soja. Na
verdade, acabara de violar regras de saúde e higiene pública, baixadas pela
Secretaria Nacional do Bem Viver, comandada por um tal de Dr. D. Varela, órgão
que martelava dia e noite, nos meios de comunicação e nas escolas, as “regras
impositivas do bom viver”.
Como fazia a cada dia primeiro
do mês, ligou o computador e goolgou “The Resistence, Tuscaloosa, Alabama,
USA”. Aberto o website do jornal, acessou a coluna de efemérides, correu os
olhos, e lá estava a tão esperada notícia: “Mark´s party was in IX.XVI.MCMLXX”
(A Festa de Mark foi em...). Passada do algarismo romano para o arábico, a data
era 9.16.1970. Como o jornal era escrito em inglês, sabia que os dois primeiros
números eram o mês, os segundos, o dia, e os demais, o ano. Feita a devida
conversão, a data era 16.9.1970. Pelas instruções já recebidas, deveria
desprezar o ano. Assim o importante era que em 16. 9 deveria procurar, no mesmo
jornal, uma propaganda de bathrobe
(roupão de banho).
Transcorridos os quinze dias,
conferiu o caderno de propaganda do The
Resistence. Olhou uma, duas, três vezes, quando viu, quase no fim da
página, à direita, o discreto anúncio “Sale bathrobe any size. We also have
size 26-37-45n x 70-53-1w” (“Venda de roupão de banho de qualquer tamanho.
Temos também o tamanho 26-37-45 X 70-73-1”). Os números deviam ser lidos 26º
37´ 45´´ N, 70º 53´1´´W. Sabia que se tratava de uma coordenada geográfica,
portanto significava 26 graus, 37 minutos e 45 segundos de latitude Norte e 70
graus, 53 minutos e 1 segundo de longitude Oeste.
As mensagens não acabavam aí.
Mais quinze dias e deveria olhar a coluna de eventos sociais do mesmo jornal. Feito isso, lá estava “Jack´s 50º
birthday will be celebrated on November the first, 2050. All friends
must be present” (A festa de 50 anos de Mark será celebrada em primeiro de
novembro de 2050. Todos os amigos devem estar presentes.).
Pronto, já tinha todos os
elementos em mãos para o grande evento. Finalmente tinha a tão esperada
informação. A “festa” seria no dia primeiro de novembro daquele ano de 2050.
Estava instruído a chegar, para não chamar a atenção, com prolongada estada, no
dia do evento pela manhã. Restava conferir as coordenadas geográficas para
saber o lugar do evento.
Jogou no computador as
coordenadas e achou o local: Ilha de Bimini, nas Bahamas. Quando lera o último
dos anúncios, já era 15 de outubro de 2050. Foi ao Google e analisou todas as
informações sobre a ilha, descrita como um pequeno paraíso a 50 milhas (80 quilômetros)
de Miami. Abriu um pequeno baú que estava em cima da cristaleira. Com as pontas
dos dedos identificou um quase imperceptível botão no fundo do baú. Apertou-o.
Uma molinha levantou uma pequena parte do fundo e lá estava ele, o objeto de
seu persignado afeto. Levantou-o com cuidadoso respeito, beijou-o e,
reverencialmente, tornou a esconder aquela pequena cruz, símbolo de sua
perseguida fé.
Pela internet comprou passagem
de ônibus de Patos para João Pessoa; passagem de avião de João Pessoa para
Recife e, de novo, passagem de avião de Recife para Miami, onde chegaria às
5h20 da manhã do dia primeiro de novembro. Além disso, comprou uma passagem de
aerobarco de Miami para a ilha de Bimini, com saída às oito da manhã e chegada
às dez horas, para alcançar o grande e ansiado evento, a reunião de sua vida, a
ter início às doze horas daquele tão aguardado dia.
Prelibava encontrar pessoas
como ele. Sabia que encontraria no destino final as dicas necessárias para
saber o local exato da reunião. Sabia também que, ao entrar no local, seria
exigido a password (senha) a ser
declamado em inglês, língua em que pessoas de diversas partes do mundo fariam o
balanço da difícil situação por que passavam, considerados que eram, naqueles
tempos, extremistas perigosos, ainda não totalmente extintos. Aquela secreta
confraria a que pertencia reunia verdadeiros resistentes, lutando nas sombras.
Esse subterrâneo movimento era a única chance de o mundo se reencontrar com as
suas origens. Eles eram o elo entre o passado e um futuro por eles almejado,
mas de garantia duvidosa.
Toda a comunicação era feita
por internet, em linguagem criptografada, única via daquela espécie em extinção
de se manter em contato com semelhantes, todos considerados verdadeiras
aberrações.
Cem pessoas, de diversas
partes do mundo, passaram pela mesma experiência de Noé Trajano. Todos líderes
representativos, como ele, de espalhadas e rarefeitas comunidades de pessoas
que pensavam e agiam reservadamente dentro do mesmo padrão comportamental.
Devidamente informados, todos faziam os mesmos preparativos para aquela
verdadeira peregrinação em busca de continuarem a pensar e agir como agiam e
pensavam, embora dentro da maior discrição possível. Aquela reunião, que se
repetia de tempos em tempos, com renovados quadros, era a esperança de manter
viva a chama que os animava de continuarem a ser senhores de suas escolhas. A
censura era imensa e há pouco tempo fora condenado a seis meses de prisão pelo
crime de dúbio pensar, em razão dos versos seguintes, considerados suspeitos,
vindos de sua veia de bom repentista:
“Ideias estranhas
têm oprimido
O ser que um dia
prevaleceu
E se Deus ao final
for perecido,
em batalha que o
mal venceu,
Alguém dirá
embevecido,
Tudo nos será
permitido”
Bjorn Bergman, a exemplo de
Noé, percorrera os mesmo caminhos na internet pra se inteirar do evento. Da
janela de seu quarto contemplava o esquisito monumento, presente em todos os
principais logradouros do mundo. Era uma esfera estilizada representativa do
planeta. Da parte de cima daquela esfera se projetava algo como duas grossas
raízes, que se iam entrelaçando para formar duas pessoas num abraço, com a
sutil insinuação de um beijo, artisticamente trabalhadas para parecerem, ao
mesmo tempo, macho e fêmea, sem a definição precisa do que realmente eram. Na
base que sustentava a esfera, a inscrição Pachamama, em forma de uma ramagem. A
substituição de outros símbolos tradicionais por esse era fruto do empenho de
uma ONG ligada à Secretaria de Fomento ao Correto Pensar da Organização das
Nações (ON), sob o direto patrocínio da Fundação Mohamed Soros. Já no metrô
para ir comprar as passagens em sua agência de viagem, no centro de Estocolmo,
cedeu, com discreto olhar encorajador, o seu assento para uma senhora, que
aceitou com prudente cumplicidade, como se ambos estivessem cometendo uma
grande infração.
Nicolas Alexopoulos, na mesma
senda de Noé e Bjorn, providenciava a compra das passagens que o levariam a
Bimini. No escritório da Olimpic Airlines, no centro de Atenas, baixou a guarda
e olhou para as pernas de uma bonita grega. Sentiu o imediato olhar de censura
do supervisor e o olhar carrancudo do guarda. Disfarçou e continuou a dar as
informações para a emissão dos tíquetes. Na saída, contemplou com indisfarçado
desgosto dois outdoors. Em um deles a foto não identificativa de uma garrafa de
bebida alcoólica com um x proibitivo em cima; o outro, propaganda com foto de
uma multidão conclamando a todos para o “cannabis day”.
Chegado o grande dia, Noé, já
na pequenina Bimini, deixou a bagagem no hotel previamente contratado. Após um
rápido descanso e um banho, desceu para a praça central, junto à marina. Olhou
com enfadado desdém o onipresente monumento intitulado Pachamama, aquele mesmo
todos os dias contemplado por Bjorn da janela de seu quarto. Notou, no canto esquerdo da praça, uma
discreta placa com uma seta apontando para a direção a tomar, com a inscrição
Mark´s Party (festa de Mark). Abaixo da seta havia, em algarismos romanos, um
número em dimensão mais discreta ainda, indicativo do prédio a que deveria se
dirigir.
Tomou a direção da seta. Cerca
de 300 metros depois, estava em frente ao número discretamente indicado na
placa. Era um prédio de dois andares. Todas as portas estavam fechadas, exceto
uma, do lado esquerdo, onde se podia ver uma pequena placa “festa de Mark”, com
uma seta indicando que deveria subir a escada.
Vencida a escada, bateu à
porta com uma aldrava, com pancadas em números alternados, em ritmo de código.
Passados poucos segundos, a pesada porta se abriu para um salão com mesas
formando um grande retângulo, onde já acomodados cerca de oitenta homens.
Seguramente todos eram pessoas como ele, Bjorn e Nicolas, membros de diferentes
grupos da mesma Confraria, espalhados pelo planeta.
Todos se voltaram para ele
inquisitivamente. Alguém que parecia presidir a reunião exclama: PASSWORD!
(SENHA!).
Ele responde enfaticamente:
MALE WHO STILL LIKES FEMALE! (MACHO QUE AINDA GOSTA DE FÊMEA!).
Título e Texto: Pedro
Frederico Caldas, 9-11-2017
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