Alberto Gonçalves
A fotografia é um mimo. Dentro de São Bento
algumas deputadas exibem o rosto fechado (porque a hora é grave). Outras riem
desalmadamente (porque a gravidade é descontraída). Eu agradeço-lhes a coragem
Ato I
O momento redentor da semana
foi a fotografia, ampla e merecidamente divulgada, de um conjunto de deputadas
caseiras em protesto. Dado que o protesto de parlamentares de partidos que ou
estão no governo ou influenciam o governo não faz muito sentido, as deputadas
resolveram protestar contra os acontecimentos internos de um país estrangeiro.
No caso, o Brasil. O facto de isso fazer ainda menos sentido não perturbou as
senhoras, que interromperam o expediente para posar para o boneco com slogans a
recusar a candidatura de um sujeito às presidenciais de lá, ao que sei
legalíssima. Ou seja, enquanto as autoridades brasileiras aceitam o sujeito,
dúzia e meia de ociosas portuguesas não pactuam com tamanho escândalo e
desabafam através de “hashtags” (uns gatafunhos precedidos por um “#”). Ignoro
se, de agora em diante, as ociosas tencionam emitir sentenças acerca de todas
as eleições a realizar no planeta. Se tencionarem, avisem que tem piada.
Aliás, tem imensa piada. A
fotografia, a que vale a pena regressar e que vale a pena contemplar, é um
mimo. Dentro de São Bento, presume-se, algumas deputadas exibem o rosto fechado
(porque a hora é grave). Outras riem desalmadamente (porque a gravidade é
descontraída). Algumas levantam cartazes. Outras não tiveram direito a cópia.
Quase todas parecem vestidas pelo costureiro dos UHF. Todas parecem estar ali
de livre vontade. E eu agradeço-lhes a coragem.
#EleNão: deputadas portuguesas juntam-se à campanha contra Bolsonaro https://t.co/tZYhaxuzvl pic.twitter.com/b3NLEx4r8V— Esquerda.Net (@EsquerdaNet) 26 de setembro de 2018
Uma pessoa dotada de compaixão
perderia uns minutos a imaginar a série de tragédias e equívocos que corroeram
a vida de uma infeliz a ponto de a deixar, aos 30, 40 ou 60 anos, naqueles
preparos, convencida da sua própria importância e de que segurar um papelinho
com a frase “#EleNão” é uma atividade compatível com a idade adulta. Mesmo para
deputados, a infantilidade é excessiva. À semelhança do que sucede nos
acidentes aéreos, é necessário que demasiadas coisas corram mal para se acabar
assim. Dramas familiares? Más companhias? Problemas clínicos? Cabe aos
especialistas decidir.
Por sorte, não sou
especialista. Donde prefiro usufruir da fotografia do que lamentá-la. Numa
época em que, à conta de proibições e susceptibilidade, o “politicamente correto”,
ou, mais exatamente, a cruzada moralista ameaça exterminar a comédia, exemplos
de humor involuntário como o referido não se devem desperdiçar. Se não as
tomarmos a sério, leia-se se não formos maluquinhos, a falta de noção de
ridículo que as tais deputadas demonstram é genuinamente engraçada, daquela
escola do burlesco que uma ocasião levou o falecido comentador Luís Delgado a
exigir numa crónica: “Basta, senhor Clinton. Demita-se!”. Só não são impagáveis
na medida em que lhes pagamos os salários.
Ato II
O sr. Trump discursou nas
Nações Unidas e lançou uma bazófia que motivou alguns risos na sala – inclusive
o do próprio –, seguidos de alguns aplausos. As rotativas, figuradas, pararam
num ápice: segundo a generalidade dos “media”, o mundo riu convulsivamente do
sr. Trump. Não importa que, no caso, “o mundo” se resuma a umas dúzias de
diplomatas obscuros. O que importa é mostrar que “o mundo” partilha o exato
desprezo pelo sr. Trump que leva certos jornalistas com agenda e comediantes
sem talento a torcer impecavelmente a informação até obter o efeito desejado
(os engajados não gostam de se engajar sozinhos).
De qualquer modo, a verdade é
que a assembleia-geral da ONU se encheu para assistir ao sr. Trump e, no dia
seguinte, se esvaziou para não assistir ao prof. Marcelo. Talvez os diplomatas
receassem, em vez da galhofa anterior, ser esmagados pela densidade intelectual
do nosso estimado presidente e arranjarem, no mínimo, uma hérnia. Fizeram bem.
Como nós sabemos e os estrangeiros pelos vistos suspeitam, o prof. Marcelo já
costuma exibir uma retórica riquíssima em clichés e vacuidades. Em Nova Iorque,
então, a solenidade do momento e a sala repleta de moscas inspiraram-no a
reforçar a dose, numa lengalenga profunda a que não faltaram o
“multilateralismo”, a paz, as “alterações climáticas”, os refugiados, o eng.
Guterres, a igualdade de género, o sr. Mandela e os oceanos. Foi muito bonito. E
um aperitivo para o encontro ao mais alto nível com o presidente do Palau, que
o mundo não pára, leia-se não pára de rir do sr. Trump. E os portugueses riem
ainda mais, mesmo que não saibam do quê.
Ato III
Um sorteio, como nas rifas,
enxotou o juiz Carlos Alexandre do processo do “eng.” Sócrates. Convinha que a
Justiça definisse um rumo, a bem dos cidadãos. Falo, em particular, dos
cidadãos que, ainda há meses, julgaram que o caso estava perdido e desataram a
confessar na imprensa a traição que o “eng.” Sócrates lhes infligiu. É verdade
que, após longos anos a defender a seriedade do homem contra as “cabalas” da
praxe, a mudança estratégica caiu um nadinha aos trambolhões. Entretanto,
porém, já nos habituáramos à ideia de que as namoradas, as viúvas, os discípulos,
os simpatizantes e outros companheiros de luta do Menino que Sonhava com
Ventoinhas haviam de facto sido iludidos e nunca sonharam nem com ventoinhas
nem com as incontáveis falcatruas de que o Menino é alegado autor. Agora, lá
terão essas pobres almas que rever novamente o texto e provar à humanidade que
sempre estiveram ao lado do Menino, um génio, um santo e o maior estadista a
alguma vez ter frequentado um apartamento do amigo Carlos. Ao trabalho, minha
gente.
Título e Texto: Aberto Gonçalves, Observador,
29-9-2018
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