José Manuel Fernandes
Dizem que é um modo de governar, e é o modo
de Costa: baseia-se no "logo se vê". No "tanto faz". É esse
o segredo da sua habilidade. Mas é também o veneno que está a dar cabo da
Administração Pública.
Lisboa, Hospital de Santa
Maria, setembro de 2018. Uma jovem levada para a urgência pelos bombeiros
depois de um acidente de viação e de uma perda de consciência, com suspeita de
traumatismo craniano, está três horas à espera para ser vista por um médico. Porque
só há um médico nessa urgência para todos os doentes traumatizados. Porque esse
médico anda a empurrar macas de doentes que chegaram não acompanhados pois não
estão lá auxiliares para o fazerem.
A história é pública porque a
mãe da jovem é jornalista e escreveu uma carta aberta ao ministro. Mas a história não é única,
porventura nem será incomum. Recentemente, num outro hospital central de
Lisboa, também depois de um acidente de viação, uma idosa esteve longas,
longuíssimas horas à espera que lhe fizessem exames urgentes. Como é que eu sei
que os exames eram urgentes? Porque estava acompanhada por duas filhas médicas
– e médicas do SNS – a cujos apelos ninguém ligava. Pior: quando desesperadas
começaram a tratar de transferir a mãe para um hospital privado (porque podiam
fazê-lo, a esmagadora maioria dos portugueses não pode), começaram a ser
tratadas com desdém.
É difícil explicar como se
chega a este ponto no país onde tudo corre bem, onde temos os melhores profissionais do mundo em tudo e onde histórias como estas
são sempre tratadas como episódios apresentados fora de contexto. Mas não são.
No hospital público de uma daquelas médicas – um dos mais importantes da Grande
Lisboa – há muitas macas nos corredores da urgência, e ao mesmo tempo muitas
camas sem utilização em salas fechadas por falta de recursos humanos. Todos
sabem que é assim, todos sabem que o ministro sabe, todos sabem que mesmo assim
nada acontece.
E se é assim, se eles sabem e
nada fazem, se tanto faz, até onde vai o seu brio profissional, a sua
capacidade esforço, a sua dedicação? Se um dia eu, médico, tenho de andar a
empurrar macas em vez de estar a ver doentes que esperam há horas, será que
depois prolongo um pouco mais o meu horário sem qualquer compensação? Ou faço
como no outro hospital, espero que alguém desista e vá tratar-se a um privado?
Talvez seja apenas a minha
experiência pessoal, talvez apenas a das pessoas com quem me relaciono e que
cada vez me contam mais histórias de serviços públicos onde o atendimento se
tornou um desespero, onde, pior do que isso, parece ser absolutamente
indiferente aos funcionários as horas sem fim que ali se está, as vezes que ali
se regressa sem conseguir resolver os assuntos. Enquanto por aí se diz que as
vacas voam, por ali disso não há sinais, bem pelo contrário.
De novo, como é que se explica
que os funcionários do Estado, que deviam ser só sorrisos depois das
“devoluções” e dos “descongelamentos”, não deem afinal sinais de felicidade,
senão mesmo de entusiasmo e renovada dedicação à maioria dos seus amores?
Porque mostram ora má cara ora falta de brio?
Tenho uma explicação benévola
e outra nada benévola – e temo que esta segunda seja bem mais verdadeira do que
a primeira.
A explicação benévola tem
apenas a ver com o espírito dos tempos. Passou a crise, passou o tempo em que a
todos se pedia um sacrifício, um esforço suplementar, um cerrar dos dentes, a
todos nos dizem que agora é tempo de descomprimir. Tendo passado o tempo em que
“a crise” levava a que se compreendesse o esforço extra, a verdade é que se
esqueceram de acrescentar que, não havendo mais gente nos serviços, e havendo
menos horas de serviço (as famosas 35 horas), no fim do dia alguma coisa
ficaria por fazer.
Isso nota-se mais em todos os
serviços que têm interfaces diretos com os cidadãos, sendo o mais crítico
o sector da saúde, o mais vasto o da educação. E o mal-estar
agrava-se quando se vai percebendo que a geringonça, por inabilidade,
oportunismo ou simples má comunicação, alimentou expectativas
nos funcionários do Estado que não vai cumprir. O caso mais evidente é o
dos professores (independentemente do que pensemos das suas reivindicações),
mas um pouco por todo o lado o “optimismo irritante” do primeiro-ministro criou
a percepção, por exemplo, de que chegar ao défice zero não passaria à frente,
como vai passar, de manter os salários congelados.
Mesmo assim não será apenas,
nem sobretudo, por defraudar expectativas que se criou este clima degradado de
um certo deixa andar que se respira em tantos serviços. Ele decorre, antes do
mais, do segredo da tão mirabolante e elogiada “habilidade” de António Costa
que, no fundo, não é mais do que um “logo se vê”. Esse “logo se vê” é o ponto
de equilíbrio possível em cada momento, um ponto de equilíbrio que não é
determinado por um rumo, um destino, uma visão, apenas por ser o que permite
sustentar a geringonça, com ela o governo e assim o poder.
Para garantir as 35 horas nos
hospitais vamos ter de abdicar de algumas camas nas urgências? Que se lixe,
idealmente ninguém vê, ninguém nota.
Para conseguirmos os objetivos
do défice é preciso cortar no investimento na ferrovia ao ponto de se começarem
a suprimir ligações? Logo se vê, talvez não seja preciso. E, se for preciso,
anunciam-se investimentos futuros.
Para manter a Catarina e a
Mortágua em linha é preciso optar entre o imposto A e o imposto B? Bem vistas
as coisas, tanto faz. Um encostozinho à direita, outro à esquerda, e siga
em frente. A coerência não é coisa que lhe faça perder o sono.
O que conta mesmo é ir
entretendo o povo. Portugal, como se sabe, está na moda, e como está na moda já
cá se dava como certa a Agência Europeia do Medicamento. Em Lisboa, claro, que
é para onde os funcionários queriam vir. Mas não. Havia autárquicas e a cidade
do Porto era importante para o PS. Vai daí passa-se a candidatura para o Porto,
em nome da descentralização.
Para perder, naturalmente.
Confirmada a derrota, promete-se o Infarmed. Não há estudos? Pois não, mas logo
se vê. Quando logo se viu, o Infarmed não foi para o Porto.
Julgam que alguma destas
coisas atrapalha António Costa ou o PS? Nem pensar nisso. Mas é um modo de
estar e governar que vai contaminando – e apodrecendo – o sentido de serviço
público.
Tanto faz, logo se vê, que se
lixe…
Afinal amanhã é outro dia, faz
sol e cantam os passarinhos, nós estamos no Governo, o Passos foi-se embora, o
Marcelo faz selfies em vez de Presidências Abertas, que pode um homem pedir
mais?
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
26-9-2018
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