O desequilíbrio das sociedades resultante,
por um lado, da sobrevalorização da voice progressista e, por outro lado, da
quebra sucessiva de interditos morais define a doença social degenerativa.
Gabriel Mithá Ribeiro
Vivemos numa sociedade que
oscila entre a ignorância letrada, a má-fé e a pobreza tipificada na tricotomia
imprensa-política-academia. É tempo de qualquer português ter consciência do
que vale enquanto indivíduo e de como se salvaguarda a sua dignidade. As
pessoas não podem continuar a ser enganadas de forma tão grosseira.
Bê-á-bá da sociedade
viciada
Se o Manifesto do
Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels (1848), introduziu a distribuição da
riqueza como princípio fundamental que permite compreender as sociedades, Exit,
Voice, and Loyalty, de Albert Hirschman (1970), atribuiu conteúdos
concretos ao princípio não menos fundamental da participação dos indivíduos na
vida social. A teoria celebra cinquenta anos e não é mais aceitável que os seus
princípios continuem ausentes do debate público.
Albert Hirschman argumentou
que tanto podem ser benéficos como nocivos os indivíduos limitados às rotinas
quotidianas, os que tiram o corpo fora de conflitos e tensões, os que fingem
que a realidade não lhes diz respeito, os passivos, atitude que
designou por exit. O mesmo com os indivíduos predispostos a
transformar a realidade, os que não sabem estar quietos e calados, os ativos que
se impõem à tranquilidade dos demais, atitude que designou por voice.
Rigidez e excessos de passividade social (ou exit) geram submissão
e estagnação, assim como rigidez e excessos de ativismo social (ou voice)
geram instabilidade e destruição. Tais atitudes e comportamentos contraditórios
são ambos fundamentais e quanto mais se equilibram tanto maior a estabilidade e
prosperidade de instituições, economias, democracias ou sociedades.
O terceiro elemento da teoria
é a loyalty. Mesmo aparentemente não fazendo nada, todos
participamos na vida social através das instituições das quais somos parte
integrante (a nossa família, escola, igreja, clube desportivo, associação,
universidade, empresa, partido político, entre outras, para chegar ao nosso
Estado), e somos leais a essas instituições porque delas esperamos algum tipo
de benefício material, afetivo, espiritual ou de outra natureza, ainda que não
tenhamos essa consciência.
É o conjunto das dinâmicas das
instituições que condiciona o destino coletivo e, desse modo, não existe
descontinuidade entre indivíduo, instituição e sociedade.
Neste meio século de
existência da teoria de Albert Hirschman, as sociedades ocidentais deixaram-se
dominar pela ascendência continuada da voice e desvalorização
do exit. O desequilíbrio social gerado, hoje profundo,
caracteriza-se por uma voice que se tornou, ao mesmo tempo,
poderosa e monopolizada pelo campo cívico e político do ativismo de esquerda,
com a consequente exclusão dos ativismos incompatíveis com esse monopólio
(cristãos, de direita, da iniciativa privada, entre outros). Uma voice tão
fortemente amputada compromete a estabilidade, prosperidade e renovação das
sociedades.
O sentido universal da
orientação moral das sociedades foi, nesse contexto, substituído pela
seletividade ideológica, uma vez que o ativismo minoritário da voice progressista
conseguiu monopolizar o ideal da busca do bem social, o que remeteu
as responsabilidades pelo mal social para a tranquilidade
existencial da maioria, os indivíduos comuns. Tal sequestro do exit pela voice é
sinônimo de terrorismo moral.
Atitudes de introspeção, como
projetos de vida religiosos ou intelectuais ou o simples afastamento da
estridência do espaço público, transitaram de virtudes cívicas para anátemas,
mesmo quando os indivíduos compensam o retraimento do espaço público com um
maior investimento na qualidade da vida familiar ou profissional. Investir em
deveres cívicos fundamentais como educar bem os filhos e orientá-los para o
sucesso escolar ou gerar empregos mesmo numa pequena empresa não subsidiada
pelo Estado – entre inúmeras formas de participação social que evitam
perturbações e encargos suplementares para os sistemas de ensino, saúde,
segurança pública, justiça, assistência social, entre outros – hoje pouco ou
nada valem quando comparados a toda a sorte de causas ativistas progressistas.
A adulteração imposta ao ideal
de participação de cada um de nós na vida coletiva subverteu a relação entre o
essencial e o acessório, a via instigadora da histeria, esterilidade,
agressividade, instabilidade, dogmatismo. Constitui dever cívico não apenas
libertar a voice da hegemonia da esquerda ativista, como
também resgatar o valor social do exit, a dignidade dos que querem
viver tranquilos na sua família, profissão, sociedade, país, e dos seus
antepassados.
Bê-á-bá da moral corrompida
Partilhemos uma máxima: é
o interdito que funda o grupo, não é o grupo que funda o interdito.
Interdito é aquilo que não se pode dizer ou fazer para que as sociedades possam
existir. São os interditos que instituem a moral social sem a qual nem a
condição humana faz sentido nem as sociedades são viáveis, a começar pelo Não
matarás!, Não furtarás!…
O problema reside na imposição
às sociedades de caminhos na direção contrária.
O interdito moral da
morte, ou da inviolabilidade da vida humana, passou a poder ser quebrado.
Depois de as sociedades terem domesticado a morte em muito por causa dos
avanços na medicina, do acesso à saúde, do controlo da criminalidade violenta,
da interdição da pena de morte, da promoção da paz ou do aumento da esperança
média de vida, a legitimação moral e legal do direito de matar está de regresso
através da interrupção voluntária da gravidez ou da eutanásia. Mesmo que essas
práticas sejam restritas, não é possível negar que o interdito de matar foi
quebrado a reboque da liderança ativista da esquerda, o que abriu a porta à
subversão da mais ancestral utopia moral que sustenta a sanidade mental da
espécie.
O interdito moral da
violação da integridade do indivíduo, dada a impossibilidade de fragmentar
a mente do corpo, também está a ser quebrado. O Erro de Descartes,
segundo o neurocientista António Damásio (1994), foi o de ter dado início a
esse caminho intelectual no século XVII. As consequências materializaram-se no
presente por ação de ideologias políticas que garantiram proteção legal a
intervenções cirúrgicas que autonomizaram o sexo do gênero,
isto é, o indivíduo passou a poder ser fragmentado entre o biológico e o
mental. Ainda que hesitemos em dilemas que nunca suprimem o sofrimento, não
restam dúvidas que foi quebrado um interdito moral fundamental a reboque da
liderança de uma esquerda ativista sempre predisposta a entregar os destinos
dos indivíduos nas mãos do Estado, ao contrário da tradição moral do Ocidente
pelo menos desde Martinho Lutero (século XVI).
Não menos decisivo é o interdito
moral da violação da propriedade individual e privada. Quanto mais quebrado
tanto menos estáveis e prósperas são as sociedades. As nacionalizações da
propriedade da Igreja ou de particulares têm constituído, ao longo da história,
os maiores atropelos. Os sintomas perpetuam-se em excessos de carga fiscal que
evidenciam a desproteção de indivíduos e sociedades face à violência do poder
tutelar do Estado. Manifestam-se em ideologias políticas ou em teorias
sociológicas e psicológicas que justificam e, por isso, alimentam a criminalidade
como forma de repor a desigual distribuição da riqueza adulterando o
significado moral e social não apenas da propriedade, como da justiça. Os
mesmos pressupostos alimentaram a propagação da corrupção, outro fruto da
desregulação civilizacional da representação da propriedade na mente dos
indivíduos, ou a leviandade com que se deslegitimam as fronteiras nacionais
como se a identidade dos povos nada valesse e como se não se sustentasse na
filiação ancestral a uma propriedade territorial coletiva. Idênticos sintomas
manifestam-se na grafitagem de edifícios ou na vandalização de automóveis, por
norma propriedade de não-abastados, assim como alastram em escolas onde hoje se
ensina a gerir um orçamento participativo, isto é, a distribuir o
fruto do trabalho alheio antes do próprio indivíduo ter concluído a sua
formação escolar, antes de ter trabalhado e antes de ter ganho o seu próprio
salário, o que subverte os princípios tradicionais da relação moral e social
com a propriedade.
Em suma, o interdito moral da
violação da propriedade vem sendo quebrado a reboque da liderança ativista da
esquerda, um domínio no qual as boas intenções políticas espoletaram sempre
consequências sociais perniciosas.
No atual contexto
civilizacional, o interdito moral da violência não poderia
ficar imune. As quebras manifestam-se no imediato ou a prazo das mais variadas
formas, como na violência que passou a atingir figuras de referência de
regulação da vida social como professores, polícias, médicos, ou figuras
maternas e paternas em contextos familiares.
Bê-á-bá da doença social
degenerativa
O desequilíbrio das sociedades
resultante, por um lado, da sobrevalorização da voice progressista
contra a tranquilidade existencial dos indivíduos comuns, o exit,
e, por outro lado, da quebra sucessiva de interditos morais define a doença
social degenerativa. Norte-americanos, brasileiros ou britânicos fizeram
escolhas políticas com valor social terapêutico. A casta orgulhosamente
retardada e poderosa dos portugressistas mantém os demais portugueses
mentalmente sequestrados. Numa sociedade assim, não é possível recusar razão
aos que dizem Chega!
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Observador,
16-3-2020
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