Júlia Viviane Kurz
Em março de 2019, marquei de
jantar com uma ex-colega de faculdade. Éramos amigas desde aquela época – cerca
de dez anos – embora a vida tivesse nos enviado para caminhos distantes que nos
mantiveram longe uma da outra nos anos anteriores. Não nego que estava nervosa.
Me arrumei, saí de casa e cheguei mais cedo do que o combinado.
Essa ansiedade era
justificada. Seria a primeira vez que ela me veria depois da transição. Minha
amiga chegou e se sentou à mesa depois de um cumprimento sincero. Foi então que
os olhos dela ganharam um tom sério, quase desafiador. Como se eu tivesse
adentrado um território proibido e devesse, portanto, ser banida da sociedade.
Não era a primeira, tampouco a última vez que encontraria tal comportamento.
Foi nesse momento que ela
disse: “Não acredito que você é de direita!”
Tal atitude não me estranhou.
Na verdade, era a situação que eu mais esperava encontrar desde o dia em que
desceu por minha garganta o primeiro comprimido de estrogênio. Essa surpresa,
devo acrescentar, ocorre independentemente das crenças políticas de meu
interlocutor. Pessoas de esquerda, como minha amiga, sempre seguem o mesmo
roteiro, e ele passa pela inevitável constatação de que a esquerda protege minorias.
Já a surpresa da direita
ocorre por outro motivo. Eles acreditam na narrativa de seus opositores de que
orientações sexuais diferentes se limitam a protestos políticos e que o simples
fato de alguém ser transexual é uma afronta ao seu modo de viver e à
estabilidade social.
Uma análise mais aproximada
dessas duas constatações revela que elas são manifestações diferentes do mesmo
fenômeno: a ignorância. A transexualidade ainda não é completamente entendida
pelos cientistas (precisamos deixar isso claro), mas existem várias pesquisas
sérias sendo feitas que nos dão novos insights todos os dias (muitas delas são
desconhecidas até mesmo pelos especialistas da área, que preferem dedicar seu
tempo à doutrinação, e não ao esclarecimento).
Transtorno de identidade
sexual
De um ponto, pelo menos, posso
ter certeza: se não houvesse marxismo, se não houvesse feminismo, se não
houvesse o movimento LGBT, ainda assim existiriam transexuais. O fenômeno
conhecido por “terceiro sexo” já era comum em sociedades primitivas e foi
documentado, por exemplo, em tribos indígenas nos Estados Unidos.
Fora do meio, poucos sabem que
a transexualidade é descrita no Catálogo Internacional de Doenças com o número
F64.0 – transtornos de identidade sexual. Devido às suas complexidades,
explicar as suas minúcias exigiria um artigo dedicado. Portanto comecemos por
uma definição simples: é uma incompatibilidade a percepção que a pessoa tem de
si mesma e sua manifestação física – o corpo. É algo que chamamos de disforia
de gênero e, como se vê, se trata de um conceito que não tem relações com esta
ou aquela ideologia política.
Ainda assim, existe a ideia de
que nós temos a obrigação moral de nos aliarmos à esquerda, a única que propõe
“políticas públicas para a população trans”, como se essas ações coletivistas
fossem necessariamente corretas e imunes a críticas. Estamos falando de
absurdos como banheiros trans, atletas trans competindo com mulheres e a
nefasta ideologia de gênero, responsável por tanto sofrimento. Entender essas
questões, e saber que elas não são a mesma coisa que a disforia, é
imprescindível para começar a compreender a transexualidade.
Há dois resultados
aterrorizantes da aplicação deste pensamento e que são pouco ou nada debatidos
no Brasil. O primeiro é o grande número de profissionais que se dizem
especializados na questão trans e que recomendam a seus pacientes a terapia
hormonal sem o diagnóstico correto de disforia de gênero. No livro When Harry
Became Sally [“Quando Harry virou Sally”], o jornalista Ryan T. Anderson expõe
casos de pessoas com quadros depressivos sérios e que foram falsamente
diagnosticados como transgêneros após uma ou duas consultas, apenas para inflar
as estatísticas.
A aplicação exagerada desta
prática levou ao surgimento dos detransitioners, pessoas que iniciaram a
terapia hormonal e descobriram que ela não era a solução para seus problemas. A
maioria aponta que foi induzida a alterar radicalmente seu corpo (algo
praticamente irreversível) por terapeutas que lhes negaram tratamento alternativo.
Transexualidade e
conservadorismo
Vejamos agora o outro lado. Se
não existe ligação entre a transexualidade e a esquerda, existe uma
incompatibilidade entre a transexualidade e aquilo que chamamos de direita? As
pessoas que mergulham fundo no real significado de conservadorismo (e não aquilo
que seus opositores dizem que é) sabem que seu princípio básico é a defesa das
tradições, entendidas como o conhecimento acumulado pelas gerações e
transmitidas para os mais jovens. Mas isso de forma alguma implica rejeição de
novas ideias. Se isso fosse verdade, a visão conservadora não teria sobrevivido
em um mundo que, hoje, é tão diferente do de séculos anteriores e que vivenciou
tantos avanços sociais e tecnológicos.
Não há motivos para rejeitar a
transexualidade sob a ótica de que ela seria progressista, sem analisar suas
particularidades. No fundo, estamos tratando de um fenômeno semelhante a
transtornos como depressão e autismo. Ser transexual não significa
necessariamente acreditar que a ordem social baseada na família precisa ser
extinta (uma tese marxista, afinal).
No fundo, as pessoas que
sentem impulsos transexuais são capazes de decidir como devem responder a ele –
algo que só pode ser garantido em um sistema de livre mercado baseado no
princípio de que cada um pode escolher como viver sua vida, desde que respeite
determinadas regras de convivência – chamadas leis – criadas para estabelecer
um ambiente com um mínimo de segurança.
Tal sistema só pode ser
garantido sob o capitalismo porque, em sua essência, as definições de direita e
esquerda se referem à organização do governo. Para o que se convencionou chamar
de direita, o poder (ou seja, a liberdade) é dado aos indivíduos para viverem
suas vidas da melhor maneira possível. Já a esquerda acredita que todas as
vontades devem obedecer ao plano do governante, que não se importa com a
vontade da população. O impulso transexual, neste caso, é percebido como algo
que entra em conflito com o dogma de obediência total ao governo central.
Voz política
Como agente político, o
transexual tem pouca voz política no Brasil, especialmente porque se trata de
um grupo de pensamento diverso que tende a ser homogeneizado e, acima de tudo,
não compreendido mesmo por aqueles que dizem querer ajudá-lo.
Há várias questões pertinentes
à transexualidade que são vistas como afrontas. Mas o contrário também é
verdade. Esse debate só pode começar de verdade quando as pessoas (e não os
políticos) aceitarem entender o transtorno e os sofrimentos envolvidos e
julgarem as pessoas pelos seus méritos, e não porque, por acaso, pertencem a um
grupo mal visto pela sociedade em geral.
Há poucas coisas mais
conservadoras do que isso.
Título e Texto: Júlia
Viviane Kurz, especial para a Gazeta do Povo, 9-3-2020
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