Henrique Pereira dos Santos
Temos de chegar aos 70% de
imunidade. Isso implica infectar 7 milhões de portugueses para que isto pare.
Isso tem implicações brutais em mortes e pressão sobre os sistemas de saúde que
a sociedade não aceita.
Estas ideias chegam-me, com
alguma frequência, associadas à pergunta: onde está o meu erro de raciocínio.
Ponto prévio: eu não percebo
nada disto, limitei-me a estranhar o que me diziam por causa do que sabia ser
uma epidemia em políticas de conservação.
O que me levou a estranhar a
retumbante vitória do governo chinês sobre uma epidemia em curso, numa cidade
enorme com milhares de entradas e saídas antes sequer da identificação do
surto, mas com ele já em curso.
Subsequentemente, encontrei
quem, sabendo muito mais do assunto que eu, me deu explicações (que fui
confirmando em outras fontes) que me permitiam ter uma visão da epidemia mais
próxima do que sei sobre fenômenos naturais.
E, com esse quadro lógico,
antecipar uma evolução que os factos têm vindo a corroborar, com a natural
desfocagem que existe sempre neste tipo de processos, porque isto não é
matemática.
Os tais 70% são um conceito
teórico sobre a nível de imunidade que é necessário para que os surtos
epidêmicos não sejam possíveis, mas diz muito pouco sobre a evolução concreta
de um surto concreto que está em curso.
O que comanda a evolução do
surto, e depois o seu impacto na sociedade, são coisas bem diferentes.
Quando um vírus entra numa
população virgem, com a qual nunca contactou, tem uma expansão exponencial, se
a sua capacidade de contágio for muito elevada.
Em vírus cuja probabilidade de
contágio depende do vírus se aguentar em meio hostil algum tempo, como é o caso
da generalidade dos vírus que afetam os pulmões, vai sendo progressivamente
menos provável encontrar um hospedeiro infectável, o que faz diminuir a
velocidade de contágio, entrando a epidemia num planalto e, depois, iniciando
uma descida até ao fim do surto, provavelmente muito antes de atingidos os 70%
de imunidade.
No caso deste coronavírus ele
precisa de sair dos pulmões do infectado, estar num ambiente hostil algum tempo
até que outro hospedeiro potencial entre em contacto com o vírus ativo e o faça
entrar no organismo, essencialmente pela boca, nariz ou olhos.
Nesta epidemia podemos ter uma
noção do que vai acontecer olhando para as curvas epidêmicas das regiões onde o
surto terminou ou está a um nível gerível, mesmo que não saibamos quase nada
sobre o que verdadeiramente está a acontecer: a incerteza é muita, mas a
ignorância é muito menor do que possamos pensar, se olharmos para essas curvas
epidêmicas, não à luz de abstrações matemáticas, mas à luz de cem anos de
conhecimento de epidemias.
Daí a hipótese de que depois
da epidemia entrar numa exponencial forte, teremos 12 a 15 dias (sim, pode ser
um bocadinho fora deste intervalo, isto não é matemática) até começar a entrar
no tal planalto e começar a descer.
Parece bruxaria, porque não
tem uma grande complexidade matemática ou teórica. Quando perguntaram a André
Dias que modelo estava a usar para dizer isto, limitou-se a responder: nenhum,
olho para a curva, e leio-a a partir do que aprendi sobre epidemias.
Qual é a vantagem disto sobre
os complexos modelos que tenho visto por aí?
É consistente com o que é um
processo biológico razoavelmente descrito. Por exemplo, a Wikipedia apresenta
como exemplo de curva epidêmica a de um surto de febre amarela em Angola, e não
anda longe disto, sem que se possa dizer que foram tomadas medidas
extraordinárias que contivessem a epidemia, com certeza se tomaram as medidas
normais e racionais de mitigação dos seus efeitos, incluindo a quarentena de
infectados, que não tem nenhuma relação com a quarentena de não infectados que
agora se pratica, sem que alguma vez a Organização Mundial de Saúde tivesse
feito recomendações nesse sentido.
E, sobretudo, revelou-se muito
certeira nas previsões de evolução da epidemia e dos seus efeitos (os Estados
Unidos e o Reino Unido apresentaram ontem, pela primeira vez, uma diminuição do
número de mortos, o que deve ser lido com a cautela de quem sabe que um valor
não é uma tendência). Por exemplo, muito no início, quando o Imperial College
estimava 400 mil mortos em Itália, esta forma de pensar falava, grosseiramente,
num máximo de dez mil, provavelmente será mais perto do dobro, mas muito mais
perto da realidade que os 400 mil do Imperial College.
Há um segundo aspecto que
comanda a evolução da epidemia, que se prende com a atividade viral.
Como referido acima, o êxito
do vírus depende da sua capacidade para se aguentar tempo suficiente num meio
hostil. Quanto mais hostil for esse meio, menor é a sua probabilidade de sobrevivência,
menor a capacidade de contágio.
Este fator ajuda a explicar as
diferenças de incidência de região para região (não é de país para país, é de
região para região, as diferenças entre a Lombardia e a Sicília são maiores que
as diferenças entre Itália e Portugal) porque o vírus depende de condições
ambientais a que é bastante sensível, para prolongar o seu tempo de atividade:
temperatura, umidade, quantidade de partículas no ar, exposição aos raios
ultravioletas, etc..
Ora o que este aspecto permite
supor é que com a progressiva caminhada para o Verão, e consequente aumento dos
raios ultravioleta, aconteça a este vírus o que todos os anos acontece com as
várias estirpes de vírus da gripe (e também sobre o que se sabe sobre outros
coronavírus), acabando o surto, na Europa e Estados Unidos, no máximo até à
primeira semana de Maio (mais uma vez, isto não é matemática, é uma indicação
imprecisa).
A verificação da realidade é
que, neste momento, com a Áustria, Itália, Suíça, Espanha à frente,
praticamente toda a Europa e os Estados Unidos estão a entrar no tal planalto
ou já solidamente instaladas na descida que levará ao fim do surto.
Sobra, por fim, o impacto nas
sociedades, que depende das características da epidemia, claro, mas também das
características das sociedades.
O impacto pode ser aumentado,
em sociedades como as do Norte de Itália, com uma população envelhecida, com
pulmões martirizados por décadas de má qualidade do ar (das piores do mundo, na
planície do Pó), com relações sociais intensas entre gerações, com um contacto
físico culturalmente muito próximo entre as pessoas, como pode ser diminuído em
sociedades como as do Japão, igualmente envelhecidas, é certo, mas com uma
preocupação de gestão de contágio gripal enorme, com hábitos de distanciamento
social, etc., bem como pode ser influenciado pela qualidade dos serviços de
saúde prestados.
Pretender discutir isto, e
como lidarmos com isto, a partir de abstrações matemáticas (ou a partir da
visão das salas de cuidados intensivos de que não falei neste post), a mim
parece-me insensato, porque isto não é matemática.
Título e Texto: Henrique
Pereira dos Santos, Corta-fitas,
6-4-2020
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