segunda-feira, 6 de abril de 2020

Isto não é matemática

Henrique Pereira dos Santos

Temos de chegar aos 70% de imunidade. Isso implica infectar 7 milhões de portugueses para que isto pare. Isso tem implicações brutais em mortes e pressão sobre os sistemas de saúde que a sociedade não aceita.


Estas ideias chegam-me, com alguma frequência, associadas à pergunta: onde está o meu erro de raciocínio.

Ponto prévio: eu não percebo nada disto, limitei-me a estranhar o que me diziam por causa do que sabia ser uma epidemia em políticas de conservação.

O que me levou a estranhar a retumbante vitória do governo chinês sobre uma epidemia em curso, numa cidade enorme com milhares de entradas e saídas antes sequer da identificação do surto, mas com ele já em curso.

Subsequentemente, encontrei quem, sabendo muito mais do assunto que eu, me deu explicações (que fui confirmando em outras fontes) que me permitiam ter uma visão da epidemia mais próxima do que sei sobre fenômenos naturais.

E, com esse quadro lógico, antecipar uma evolução que os factos têm vindo a corroborar, com a natural desfocagem que existe sempre neste tipo de processos, porque isto não é matemática.

Os tais 70% são um conceito teórico sobre a nível de imunidade que é necessário para que os surtos epidêmicos não sejam possíveis, mas diz muito pouco sobre a evolução concreta de um surto concreto que está em curso.

O que comanda a evolução do surto, e depois o seu impacto na sociedade, são coisas bem diferentes.

Quando um vírus entra numa população virgem, com a qual nunca contactou, tem uma expansão exponencial, se a sua capacidade de contágio for muito elevada.

Em vírus cuja probabilidade de contágio depende do vírus se aguentar em meio hostil algum tempo, como é o caso da generalidade dos vírus que afetam os pulmões, vai sendo progressivamente menos provável encontrar um hospedeiro infectável, o que faz diminuir a velocidade de contágio, entrando a epidemia num planalto e, depois, iniciando uma descida até ao fim do surto, provavelmente muito antes de atingidos os 70% de imunidade.

No caso deste coronavírus ele precisa de sair dos pulmões do infectado, estar num ambiente hostil algum tempo até que outro hospedeiro potencial entre em contacto com o vírus ativo e o faça entrar no organismo, essencialmente pela boca, nariz ou olhos.

Nesta epidemia podemos ter uma noção do que vai acontecer olhando para as curvas epidêmicas das regiões onde o surto terminou ou está a um nível gerível, mesmo que não saibamos quase nada sobre o que verdadeiramente está a acontecer: a incerteza é muita, mas a ignorância é muito menor do que possamos pensar, se olharmos para essas curvas epidêmicas, não à luz de abstrações matemáticas, mas à luz de cem anos de conhecimento de epidemias.

Daí a hipótese de que depois da epidemia entrar numa exponencial forte, teremos 12 a 15 dias (sim, pode ser um bocadinho fora deste intervalo, isto não é matemática) até começar a entrar no tal planalto e começar a descer.

Parece bruxaria, porque não tem uma grande complexidade matemática ou teórica. Quando perguntaram a André Dias que modelo estava a usar para dizer isto, limitou-se a responder: nenhum, olho para a curva, e leio-a a partir do que aprendi sobre epidemias.

Qual é a vantagem disto sobre os complexos modelos que tenho visto por aí?

É consistente com o que é um processo biológico razoavelmente descrito. Por exemplo, a Wikipedia apresenta como exemplo de curva epidêmica a de um surto de febre amarela em Angola, e não anda longe disto, sem que se possa dizer que foram tomadas medidas extraordinárias que contivessem a epidemia, com certeza se tomaram as medidas normais e racionais de mitigação dos seus efeitos, incluindo a quarentena de infectados, que não tem nenhuma relação com a quarentena de não infectados que agora se pratica, sem que alguma vez a Organização Mundial de Saúde tivesse feito recomendações nesse sentido.

E, sobretudo, revelou-se muito certeira nas previsões de evolução da epidemia e dos seus efeitos (os Estados Unidos e o Reino Unido apresentaram ontem, pela primeira vez, uma diminuição do número de mortos, o que deve ser lido com a cautela de quem sabe que um valor não é uma tendência). Por exemplo, muito no início, quando o Imperial College estimava 400 mil mortos em Itália, esta forma de pensar falava, grosseiramente, num máximo de dez mil, provavelmente será mais perto do dobro, mas muito mais perto da realidade que os 400 mil do Imperial College.

Há um segundo aspecto que comanda a evolução da epidemia, que se prende com a atividade viral.

Como referido acima, o êxito do vírus depende da sua capacidade para se aguentar tempo suficiente num meio hostil. Quanto mais hostil for esse meio, menor é a sua probabilidade de sobrevivência, menor a capacidade de contágio.

Este fator ajuda a explicar as diferenças de incidência de região para região (não é de país para país, é de região para região, as diferenças entre a Lombardia e a Sicília são maiores que as diferenças entre Itália e Portugal) porque o vírus depende de condições ambientais a que é bastante sensível, para prolongar o seu tempo de atividade: temperatura, umidade, quantidade de partículas no ar, exposição aos raios ultravioletas, etc..

Ora o que este aspecto permite supor é que com a progressiva caminhada para o Verão, e consequente aumento dos raios ultravioleta, aconteça a este vírus o que todos os anos acontece com as várias estirpes de vírus da gripe (e também sobre o que se sabe sobre outros coronavírus), acabando o surto, na Europa e Estados Unidos, no máximo até à primeira semana de Maio (mais uma vez, isto não é matemática, é uma indicação imprecisa).

A verificação da realidade é que, neste momento, com a Áustria, Itália, Suíça, Espanha à frente, praticamente toda a Europa e os Estados Unidos estão a entrar no tal planalto ou já solidamente instaladas na descida que levará ao fim do surto.

Sobra, por fim, o impacto nas sociedades, que depende das características da epidemia, claro, mas também das características das sociedades.

O impacto pode ser aumentado, em sociedades como as do Norte de Itália, com uma população envelhecida, com pulmões martirizados por décadas de má qualidade do ar (das piores do mundo, na planície do Pó), com relações sociais intensas entre gerações, com um contacto físico culturalmente muito próximo entre as pessoas, como pode ser diminuído em sociedades como as do Japão, igualmente envelhecidas, é certo, mas com uma preocupação de gestão de contágio gripal enorme, com hábitos de distanciamento social, etc., bem como pode ser influenciado pela qualidade dos serviços de saúde prestados.

Pretender discutir isto, e como lidarmos com isto, a partir de abstrações matemáticas (ou a partir da visão das salas de cuidados intensivos de que não falei neste post), a mim parece-me insensato, porque isto não é matemática.
Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 6-4-2020

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